Livro: Imortalidade ou
Ressurreição?
Autor: Dr. Samuele
Bacchiocchi
CAPÍTULO II
O PONTO DE VISTA BÍBLICO
DA NATUREZA HUMANA
A pergunta suscitada pelo
salmista, “que é o homem, que dele Te lembres?” (Sal. 8:4),
é uma das indagações mais fundamentais que
alguém teria a considerar. É fundamental porque sua
resposta determina o modo pelo qual nos vemos a nós
próprios, a este mundo, à redenção e a
nosso destino final.
Nenhuma era aprendeu tanto e
tantas coisas sobre a natureza humana do que a nossa, contudo nenhuma
era sabe menos a respeito do que o homem realmente é. Tendo
perdido sua consciência de Deus, muitas pessoas hoje estão
basicamente preocupadas com sua existência presente. A perda de
consciência de Deus torna muitas pessoas incertas quanto ao
significado da vida, porque é somente com referência a
Deus e a Sua revelação que a natureza e destino da vida
podem ser verdadeiramente percebidos.
A questão da natureza
humana tem sido preocupação constante na história
do pensamento ocidental. No Capítulo I fizemos notar que,
historicamente, a maioria dos cristãos tem definido a natureza
humana dualisticamente, que consiste de um corpo material, mortal, e
uma alma imaterial, imortal, que sobrevive ao corpo na morte. A
começar com o Iluminismo (um movimento filosófico do
século XVIII), tentativas têm sido feitas para definir o
homem como uma máquina que faz parte de um gigantesco maquinismo
cósmico. Os seres humanos estariam aprisionados inescapavelmente
num universo determinístico e seu comportamento é
determinado por forças tão impessoais e
involuntárias quanto fatores genéticos,
secreções químicas, educação,
criação e condicionamento social. As pessoas não
têm uma alma imaterial, imortal, somente um corpo mortal,
material, que é condicionado pelo determinismo do
maquinário cósmico.
Essa visão
materialística deprimente que reduz os seres humanos à
condição de uma máquina ou de um animal nega o
ponto de vista bíblico do homem criado à imagem de Deus.
Em vez de ser “semelhante a Deus”, os seres humanos são
reduzidos a serem “como um animal”. Talvez como reação a
essa visão pessimística, vários cultos e
ideologias modernas e pseudo-pagãs (como a Nova Era) deificam os
seres humanos. O homem nem é “semelhante a um animal”, nem
“semelhante a Deus”, ele é deus. Ele conta com poder divino
inerente e recursos que aguardam ser liberados. Esse novo evangelho
humanístico é popular hoje em dia porque desafia as
pessoas a buscarem a salvação dentro delas
próprias por explorarem e liberarem o potencial e recursos que
no seu íntimo estão adormecidos.
O que estamos vivenciando hoje
é uma violenta reversão do pêndulo de um ponto de
vista materialista extremo da natureza humana para um ponto de vista de
deificação extremo e místico. Nesse contexto, as
pessoas são confrontadas com duas escolhas: Ou os seres humanos
nada são, senão máquinas pré-programadas,
ou são divinas com potencial ilimitado. A resposta cristã
a esse desafio deve ser buscada nas Sagradas Escrituras que propiciam a
base para definir nossas crenças e práticas. Nosso estudo
revela que a Escritura ensina que nem somos máquinas
programadas, nem seres divinos com potencial ilimitado. Somos seres
criados à imagem de Deus e Dele dependentes para nossa
existência neste mundo e no mundo por vir.
Objetivos do Capítulo. Este capítulo busca
compreender o ponto de vista veterotestamentário da natureza
humana examinando quatro termos antropológicos proeminentes,
como sejam alma, corpo, coração e espírito. Os
vários significados e empregos desses termos são
analisados para determinar se qualquer deles é alguma vez
utilizado para denotar uma substância imaterial que age
independentemente do corpo.
Nosso estudo indica que o Velho
Testamento não distingue entre os órgãos
físicos e espirituais, porque a gama inteira de
funções humanas mais elevadas, tais como sentir, pensar,
saber, amar, observar os mandamentos de Deus, louvar e orar é
atribuída não só aos órgãos
“espirituais” da alma e espírito, mas também aos
órgãos físicos do coração e,
ocasionalmente, aos rins e vísceras. A alma (nephesh) e o espírito (ruach) são empregados no
Velho Testamento para denotar, não entidades imateriais capazes
de sobreviver ao corpo quando da morte, mas uma gama completa de
funções físicas e psicológicas.
Ao empreendermos esta
investigação devemos ter em mente que os escritores
bíblicos não estavam familiarizados com a moderna
fisiologia ou psicologia. Eles não sabiam necessariamente, por
exemplo, que a sensação que experimentamos quando nossa
mão toca um objeto é causada por nervos que transmitem a
informação ao cérebro. A palavra
“cérebro” não ocorre na Bíblia em inglês
[N.R.: nem em português]. Os autores bíblicos nada sabiam
do sistema nervoso ou respiratório. Na maior parte eles definiam
a natureza humana em termos do que viam e sentiam.
Este capítulo divide-se em
cinco partes principais. A primeira parte examina o que o relato da
criação nos diz a respeito da constituição
original da natureza humana. As quatro partes subseqüentes
analisam os quatro termos fundamentais da natureza humana que
encontramos no Velho Testamento, quais sejam, alma, corpo,
coração e espírito. Nossa
investigação indica que todos esses termos descrevem,
não substâncias inteiramente diferentes, cada uma com suas
próprias funções distintas, mas as capacidades e
funções inter-relacionadas e integradas da mesma pessoa.
O fato de que uma pessoa consiste de várias partes que
são integradas, inter-relacionadas, e funcionalmente unidas,
não deixa margem à noção da alma ser
distinta do corpo, destarte removendo a base para a crença na
sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.
PARTE I: A
NATUREZA HUMANA NA CRIAÇÃO
Criação, Queda e Redenção. Ao buscar
entender o ponto de vista bíblico da natureza humana, devemos
reconhecer primeiro que o sentido da vida humana é definido na
Escritura em termos da criação, a queda no pecado, e o
plano de Deus da redenção. Essas três verdades
básicas são fundamentais para entender a perspectiva
bíblica da natureza e destino humanos. Cronologicamente, essas
são as primeiras três verdades que encontramos em
Gênesis 1 a 3, onde ocorre o primeiro relato da
criação, da Queda e da redenção.
Tematicamente, tudo o mais na Escritura é um desenvolvimento
desses três conceitos. Eles propiciam o prisma mediante o qual a
existência humana, com todos os seus problemas, é vista e
definida.
Quando Jesus abordou a
questão do casamento e divórcio, Ele primeiro a analisou
em termos do que o casamento deveria significar quando da
criação. Daí Ele a considerou pela perspectiva da
Queda, porque o pecado explica a razão da permissão para
o divórcio (Mat. 19:1-8). Semelhantemente, Paulo apela à
criação, à Queda e à redenção
para explicar a distinção dos papéis entre homens
e mulheres (1 Cor. 11:3-12; 1 Tim. 2:12-14), bem como sua igualdade em
Cristo (Gál. 3:28).
Quando consideramos a natureza
humana a partir da perspectiva bíblica da criação,
Queda e redenção, imediatamente vemos que a
criação nos fala a respeito da constituição
original da natureza humana, a Queda a respeito de sua
condição presente, e a redenção, a respeito
da restauração sendo realizada no presente e consumada no
futuro. Assim, uma definição bíblica abrangente da
natureza humana deve ser levada em consideração com o que
a natureza humana era por ocasião da criação, o
que se tornou após a Queda, e o que é agora e se
tornará no futuro como resultado da redenção.
A
Criação do Homem. O ponto de início
lógico para o estudo da perspectiva bíblica da natureza
humana é o relato da criação do homem. Empregamos
aqui o termo “homem” como utilizado na Escritura, ou seja, incluindo
tanto o homem quanto a mulher. A primeira importante
declaração bíblica é encontrada em
Gênesis 1:26, 27: “Então disse Deus: ‘Façamos o
homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança’ . . .
Assim criou Deus o homem à Sua própria imagem, à
imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gên.
1:26-27).
O primeiro relato da
criação do homem nos diz que a vida humana teve
início, não em resultado de forças naturais
fortuitas ou uma mutação acidental no mundo animal, mas
como resultado de um ato criativo de Deus. Foi após o Senhor ter
chamado à existência a Terra com toda a sua
vegetação e animais que Ele anunciou a
criação do homem. É como se as pessoas fossem o
enfoque específico da criação de Deus. A
impressão transmitida pela narrativa é de que quando Deus
chegou à criação do homem, passou a dedicar-Se a
algo diferente e distinto.
Ao fim de cada estágio da
criação do mundo, Deus parava para contemplar o que havia
feito e pronunciava-o como “bom” (Gên. 1:4, 10,12, 18, 21, 25).
Então Deus Se dispôs a criar um ser que pudesse ter o
senhorio sobre Sua criação; um ser com o qual Ele pudesse
caminhar e conversar. O advérbio “então” no início
do verso 26 sugere que a criação do homem foi algo
especial. Todos os atos criativos de Deus anteriores são
apresentados como uma série contínua ligada pela
conjunção “e” (Gên. 1:3, 6, 9, 14, 20, 24). Mas
quando a ordem cósmica da criação foi
concluída e a Terra estava pronta para sustentar a vida humana,
então o Senhor expressou Sua intenção de criar o
homem. “Então disse Deus, façamos o homem” (Gên.
1:26). Após criar o homem, Deus pronunciou “muito bom”,
considerando Sua criação inteira (Gên. 1:31).
Uma
Criação Especial de Deus. Essa
declaração original, divina, sugere duas verdades
fundamentais: Primeiro, o homem é uma criação
especial de Deus cuja vida depende Dele. Sua vida deriva de Deus e
continua somente por causa da misericórdia de Deus. Esse senso
de contínua dependência humana do Altíssimo
é básico ao entendimento bíblico da natureza
humana. Deus é o Criador e os seres humanos são criaturas
dependentes Dele para sua origem e continuação de sua
existência.
Em segundo lugar, o homem é
distinto de Deus. Os seres humanos têm um início temporal,
mas Deus é eterno. O Senhor não é o homem que
possa morrer. A Escritura destaca o contraste entre os atributos
infinitos de Deus como Criador e a limitação finita do
homem como criatura. Esta é uma consideração
importante que se deve ter em mente quando definindo o ponto de vista
bíblico da natureza humana. A revelação divina
global apresenta os seres humanos como criaturas que dependem de Deus,
mas são Dele distintas (Isa. 45:11; 57:15; Jó 10:8-10).
Contudo, a despeito da ênfase da dependência do homem de
Deus, como criatura, ele permanece num posição de
relacionamento especial com o Criador. “O caráter distinto de
sua humanidade coloca-o à parte não só das outras
criaturas de Deus, mas também para o serviço
amorável e grato a seu Criador”.1
À
Imagem de Deus. A característica distintiva da
relação do homem com Deus é expressa na
declaração de sua criação à imagem
de Deus. “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança” (Gên. 1:26; cf. 5:1-3; 9:6). Tentativas
elaboradas têm sido feitas para definir o que a “imagem de Deus”,
segundo o homem foi criado, vem a ser.2 Alguns afirmam
tratar-se da semelhança física entre Deus e o homem.3
O problema com essa posição é que pressupõe
que Deus tem uma natureza corpórea semelhante à dos seres
humanos. Tal idéia é desmentida pela
declaração de Cristo de que “Deus é
Espírito” (João 4:24), o que sugere que Ele não
é limitado por espaço ou matéria, como nós.
Ademais, os termos bíblicos para o aspecto físico da
natureza humana (bashar, sarks--carne, corpo) nunca
são aplicados a Deus.
Outros julgam que a imagem de Deus
é o aspecto não-material da natureza humana, ou seja, sua
alma espiritual. Assim, R. Laird-Harris declara: “O homem somente no
mundo é um ser espiritual, moral e racional. Ele possui uma alma
concedida por Deus e a inferência é que essa alma, sendo
feita à imagem de Deus, não se sujeita aos limites de
tempo e espaço”.4 Numa linha semelhante de
pensamento, Calvino afirma: “Não se pode duvidar que o
sítio apropriado da imagem é a alma”, conquanto ele
acrescente que “não há qualquer parte no homem, nem mesmo
o seu corpo, que não seja adornada com alguns raios de sua
glória”.5 Tal ponto de vista pressupõe um
dualismo entre o corpo e a alma que não tem respaldo no relato
da criação do Gênesis. O homem não recebeu
uma alma de Deus; ele foi feito uma alma vivente. Além disso, na
história da criação os animais também
são mencionados como tendo dentro em si uma alma vivente,
contudo, não foram criados à imagem de Deus.
Alguns interpretam a imagem de
Deus no homem como sendo a combinação da masculinidade e
feminilidade humanas.6 A base para essa
interpretação é primariamente a proximidade da
expressão “macho e fêmea os criou” com a cláusula
“à imagem de Deus o criou” (Gên. 1:27). Indubitavelmente,
há alguma verdade teológica na noção de que
a imagem de Deus é refletida na comunhão de
macho-fêmea como iguais. Mas o problema com essa
interpretação é que isso toma muito de tão
pouco para reduzir a imagem de Deus exclusivamente à
comunhão macho-fêmea como iguais.
A interpretação da
imagem de Deus como sendo a combinação da masculinidade e
feminilidade humanas tem levado alguns a transformar a Deus num Ser
andrógino, metade macho e metade fêmea. Tal ponto de vista
é estranho à Bíblia, uma vez que Deus não
carece de um correspondente feminino para completar Sua identidade. Um
ato de Deus é muitas vezes comparado com o de uma mãe
compassiva (Isa. 49:15), mas a pessoa de Deus, é revelada,
especialmente mediante Jesus Cristo, como a de nosso Pai.
Imagem Como Capacidade Para Refletir a Deus. Em nosso ponto de
vista, a imagem de Deus é associada não ao homem como
macho e fêmea, ou a uma alma imortal atribuída a nossa
espécie, mas à capacidade da humanidade em ser e fazer
num nível finito o que Deus é e faz num nível
infinito. O relato da criação parece estar dizendo que
conquanto o sol reine no dia, e a lua na noite, e os peixes reinem no
mar, a humanidade reflete a imagem de Deus tendo domínio sobre
todos esses reinos (Gên. 1:28-30).
No Novo Testamento, a imagem de
Deus na humanidade nunca é associada à comunhão
macho-fêmea, ou à semelhança física, ou uma
alma não-material, espiritual, mas com as capacidades morais e
racionais: “e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Col. 3:10 cf.
Efé. 4:24). Semelhantemente, a conformidade com a imagem de
Cristo (Rom. 8:29; 1 Cor. 15:49) é geralmente entendida em
termos de justiça e santidade. Nenhuma dessas
qualidades é possuída pelos animais. O que distingue as
pessoas dos animais é o fato de que a natureza humana
inerentemente tem possibilidades semelhantes a Deus. Em virtude de ser
criado à imagem de Deus, o ser humano é capaz de
refletir o Seu caráter em sua própria vida.
Ser criado à imagem de Deus
significa que devemos ver-nos a nós próprios como
intrinsecamente valiosos e ricamente investidos com significado,
potencial, e responsabilidades. Significa que fomos criados para
refletir a Deus em nossos pensamentos e ações. Devemos
ser
e fazer numa escala finita o que Deus é e faz numa escala
infinita.
A Bíblia nunca menciona a
imortalidade em ligação com a imagem de Deus no homem. A
árvore da vida representava a imortalidade na comunhão
com o Criador, mas como resultado do pecado, Adão e Eva foram
expulsos do jardim, sendo assim privados de acesso à fonte de
vida contínua em Sua presença de Deus.
Por que devia a imagem ser
encontrada na imortalidade mais do que o seria na onisciência,
onipotência ou onipresença? Nenhum desses outros atributos
divinos foiatribuído ao homem como parte da imagem de Deus,
mesmo antes da Queda. Nada na Escritura sugere que o homem transmite a
imagem de Deus por possuir atributos divinos, como a imortalidade.
Não existem razões válidas para isolar a
imortalidade como o único atributo divino que se tenciona
expressar pela frase “imagem de Deus”. Ao contrário, muito na
Escritura nega isso, como veremos.
Gênesis
2:7: “Uma Alma Vivente”. A segunda importante
declaração bíblica para entender a natureza humana
se encontra em Gênesis 2:7. Não surpreende que este texto
forme a base de muita da discussão concernente à natureza
humana, uma vez que propicia o único relato bíblico de
como Deus criou o homem. O texto reza: “Então formou Deus
o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego
de vida; e o homem tornou-se uma alma vivente” (Gên. 2:7).
Historicamente, este texto tem
sido lido através das lentes do dualismo clássico. Tem-se
presumido que o fôlego de vida soprado nas narinas do homem foi
simplesmente uma alma imaterial, imortal, que Deus implantou em seu
corpo. Assim, Gênesis 2:7 tem sido historicamente interpretado
à base do dualismo tradicional corpo-alma.
O que tem conduzido a essa
interpretação errônea é o fato de que a
palavra hebraica nephesh, traduzida por “alma” em Gênesis 2:7,
tem sido entendida conforme à
definição-padrão de Webster para alma: “A
essência imaterial, princípio animador, ou causa atuante
de uma vida individual”. Ou “O princípio espiritual incorporado
nos seres humanos”.7 Essa definição
padrão reflete o ponto de vista platônico da
alma-psychê como sendo uma essência imaterial, imortal que
reside no corpo, conquanto não sendo dele parte.
Esse ponto de vista prevalecente
leva as pessoas a lerem as referências do Velho Testamento a
alma-nephesh à luz do dualismo platônico, antes que
segundo o holismo bíblico. Como Claude Tresmontant expressou,
“Ao aplicar à palavra hebraica nephesh
[alma] às características da psychê [alma]
platônica, . . . deixamos que nos escape o real sentido de
nephesh [alma] e, ademais, somos deixados com inumeráveis
pseudo-problemas”.8
As pessoas que lêem as
referências do Velho Testamento a nephesh (que na VKJ recebe a
tradução de “alma” 472 vezes) com uma mentalidade
dualística terá grande dificuldade em entender o ponto de
vista holístico da natureza humana. Segundo isso, o corpo e a
alma são a mesma pessoa vista de diferentes perspectivas.
Enfrentarão problemas em aceitar o significado bíblico de
“alma” como o princípio que anima tanto a vida humana quanto a
animal. Ademais, estarão em apuros para explicar aquelas
passagens que falam de uma pessoa morta como uma alma-nephesh morta (Lev. 19:28; 21:1,
11; 22:4; Núm. 5:2; 6:6, 11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13: Ageu 2:13).
Para elas é inconcebível que uma alma imortal possa
morrer com o corpo.
O
Sentido de “Alma Vivente”. A prevalecente
noção de que a alma humana é imortal tem levado
muitos a interpretarem a declaração “e o homem tornou-se
uma alma
vivente” (Gên. 2:7) como significando “o homem obteve uma alma
vivente”. Essa interpretação tem sido desafiada por
numerosos eruditos que são sensíveis à
confusão relativa à diferença entre o conceito
dualístico grego e a concepção holística
bíblica da natureza humana.
Aubrey Johnson, por exemplo,
explica que nephesh-alma em Gênesis 2:7 denota o homem integral,
com ênfase sobre sua consciência e vitalidade.9
Semelhantemente, Johannes Pedersen, falando da criação do
homem em seu clássico estudo Israel, escreve: “A base de sua
essência era a frágil substância corpórea,
mas pelo sopro de Deus foi transformado e tornou-se uma nephesh, uma alma. Não
é dito que o homem foi suprido com uma nephesh, e assim a
relação entre corpo e alma é bem diferente do que
é para nós. Tal como ele é, o homem em sua
essência total é uma alma”.10
Pedersen prossegue fazendo notar
que “no Velho Testamento somos constantemente confrontados com o fato
de que o homem, como tal, é uma alma. Abraão partiu para
Canaã com sua propridade e todas as almas que lhe pertenciam
(Gên. 12:5), e quando Abraão conseguiu os despojos em sua
expedição guerreira contra os grandes reis, o rei de
Sodoma exortou-o a dar-lhe as pessoas e conservar os bens (ver
Gên. 14:21). Setenta almas da casa de Jacó foram para o
Egito (Gên. 46:27; Êxo. 1:5). Toda vez que um censo
é levantado, a pergunta que surge sempre é: Quantas almas
há? Nesse e em outros numerosos lugares podemos substituir
pessoas por almas”.11
Comentando sobre Gênesis
2:7, Hans Walter Wolff pergunta: “O que nephesh [alma] significa aqui?
Certamente não alma [no sentido dualístico tradicional]. Nephesh foi designado para ser
visto junto com a forma completa do homem, e especialmente com sua
respiração; ademais o homem não tem nephesh
[alma], ele é nephesh,
ele vive como nephesh [alma]”.12
O fato de que a alma na Bíblia se apresenta como a pessoa viva
integral é reconhecido mesmo pelo erudito católico Dom
Wulstan Mork, que se expressa em termos semelhantes: “É nephesh [alma] que dá vida
ao bashar [corpo], mas
não como uma substância distinta. Adão não
tem nephesh [alma]; ele
é nephesh [alma], tal
como ele é bashar
[corpo]. O corpo, longe de ser dividido de seu princípio
animado, é a nephesh
[alma] visível”.13
De uma perspectiva bíblica,
o corpo e a alma não são duas substâncias separadas
(uma mortal e outra imortal) que residem juntas dentro do ser humano,
mas duas características da mesma pessoa. Johannes Pedersen
admiravelmente sumaria este ponto com uma
declaração que tem se tornado proverbial: “O corpo
é a alma em sua forma exterior”.14 O mesmo ponto de
vista é expresso por H. Wheeler Robinson numa
declaração igualmente famosa: “A idéia hebraica de
personalidade é a de um corpo animado, não (como para os
gregos) o de uma alma encarnada”.15
Em suma, podemos dizer que a
expressão “o homem tornou-se uma alma vivente--nephesh hayyah” não
significa que por ocasião da criação seu corpo foi
dotado de uma alma imortal, uma entidade separada, distinta do corpo.
Em vez disso, significa que em resultado do divino soprar do
“fôlego de vida” no corpo inanimado, o homem tornou-se um ser
vivente, que respira, não mais, nem menos. O
coração começou a bater, o sangue a circular, o
cérebro a pensar, sendo todos os sinais vitais ativados.
Declarado em termos simples, “uma alma vivente” significa “um ser vivo”.
As implicações
práticas dessa definição são destacadas
numa maneira sugestiva por Dom Wulstan Monk: “O homem como nephesh [alma] significa que
é sua nephesh [alma]
que vai jantar, que apanha um bife e o come. Quando vejo outra pessoa,
o que vejo não é meramente o seu corpo, mas sua nephesh [alma] visível,
porque, nos termos de Gênesis 2:7, isso é o que constitui
o
homem--uma nephesh vivente.
Os olhos têm sido chamados, ‘a janela da alma’. Isso é
realmente uma dicotomia. Os olhos, enquanto pertencerem à pessoa
viva, são em si próprios a revelação da
alma”.16
Os Animais Como “Almas Viventes”. O sentido de “alma vivente”
como simplesmente “ser vivente” é apoiado pelo emprego da mesma
frase “alma vivente--nephesh hayyah
para os animais. Em muitas traduções bíblicas,
como é o caso da VKJ, esta frase aparece pela primeira vez em
Gênesis 2:7 quando se descreve a criação de
Adão. Mas devemos observar que esta não é a
primeira ocasião em que tal frase surge na Bíblia
hebraica. Também a encontramos em Gênesis 1:20, 21, 24 e
30. Em todos esses quatro versos “alma vivente--nephesh hayyah” foi traduzida como
“criaturas viventes” em referência aos animais, mas os tradutores
da maiorias das versões em inglês escolheram traduzir
“criatura vivente” em lugar de “alma vivente”. O mesmo
é verdade com relação a outras passagens
após Gênesis 2:7, onde os animais são referidos
como “criaturas viventes”, em lugar de “almas viventes” (Gên.
2:19, 9:10; 12, 15, 16: Lev. 11:46).
Por que os tradutores da maioria
das versões em inglês traduzem a mesma frase hebraica nephesh hayyah como “alma vivente”
nas referências a seres humanos, e “criaturas viventes” quando
referindo-se aos animais? A razão é simples: estão
condicionados pela crença de que os seres humanos têm uma
alma imaterial, imortal, o que não corresponderia aos animais.
Conseqüentemente, empregam a palavra “alma” para homem e
“criatura” para animais ao traduzirem o mesmo termo hebraico nephesh. Norman Snaith condena essa
interpretação como “bastante repreensível” e
declara ser “um grave reflexo da parte dos Revisores [tradutores da
Versão Autorizada, em inglês] que retiveram essa enganosa
diferença na tradução. . . A frase hebraica devia
ser traduzida exatamente do mesmo modo em ambos os casos. Agir
diferente disso é enganar todos quantos não lêem o
hebraico. Não há desculpas nem defesa apropriada. A
tendência de ler ‘alma imortal’ como o sentido do hebraico nephesh e traduzi-la nesse sentido
é muito antiga, e pode ser vista na Septuaginta. . .”17
Basil Atkinson, um
ex-bibliotecário da Universidade Cambridge, oferece a mesma
explicação. “Nossos tradutores [da Versão
Autorizada] ocultaram este fato de nós, presumivelmente porque
estavam tão presos a noções teológicas
atuais do significado da palavra ‘alma’ que ousaram não
traduzi-la por ela ser uma palavra hebraica que faz referência a
animais, conquanto o tenham feito na margem [da Versão
Autorizada] nos versos 20 e 30. Nesses versos encontramos ‘criaturas
que se movem, ou alma vivente’ (Heb.) (ver. 20); ‘toda alma vivente
(Heb. nephesh) que se move’
(ver. 21); “Produza a terra almas viventes (Heb. nephesh) segundo sua
espécie’ (ver. 24); e ‘e a toda besta da terra, e a toda ave do
ar, e a todos os répteis da terra, nos quais há alma
vivente’ (Heb. nephesh) (ver.
30)”.18
O emprego de nephesh-alma nessas passagens
em referência a toda sorte de animais revela claramente que nephesh não é uma
alma imortal dada ao homem, mas o princípio animador de vida ou
o “fôlego de vida” que está presente tanto no homem quanto
no animal. Ambos são caracterizados como almas em contraste com
as plantas. A razão por que as plantas não são
almas é possivelmente porque não possuem
órgãos que lhes permitam respirar, sentir dor e alegria,
ou mover-se em busca de alimento. O que distingue a alma humana da dos
animais é o fato de que os seres humanos foram criados à
imagem de Deus, isto é, com possibilidades semelhantes às
de Deus, não disponíveis aos animais.
O ponto importante a se notar
nestas alturas é que tanto o homem quanto o animal são
almas. Como Atkinson assinala, “Eles [o homem e os animais] não
são criaturas bipartites que consistem de uma alma e um corpo
que podem ser separados e prosseguir vivendo. Suas almas são a
totalidade deles e compreende seus corpos, bem como suas faculdades
mentais. São referidos como tendo alma, ou seja, sendo
conscientes, para distingui-los dos objetos inanimados que não
têm vida. Do mesmo modo, podemos dizer que um homem ou um animal
é um ser consciente e tem um ser consciente”.19 O
termo alma-nephesh é
empregado tanto para as pessoas quanto para os animais porque ambos
são seres conscientes. Ambos compartilham o mesmo
princípio animador de vida, ou “fôlego de vida”.
Alma
e Sangue. Adicionalmente às quatro passagens que
consideramos em Gênesis 1, há 19 outras no Velho
Testamento onde a palavra nephesh
é aplicada aos animais. Desejamos considerar duas delas porque
ajudam a esclarecer adicionalmente o sentido de “alma vivente” em
Gênesis 2:7. Essas passagens são de especial interesse
porque associam nephesh com
sangue. Em Levítico 17:11, lemos: “Porque a vida da carne
está no sangue”. “Vida” é tradução do
hebraico nephesh, desse modo
a passagem reza: “A alma da carne está no sangue”.
No verso 14 do mesmo
capítulo lemos: “Portanto a vida de toda carne é o seu
sangue; por isso tenho dito aos filhos de Israel: Não comereis o
sangue de nenhuma carne, porque a vida de toda carne é o seu
sangue”. Aqui a palavra “vida” é empregada em cada caso para
traduzir o hebraico nephesh,
então o texto devia realmente assim rezar: “Pois a alma de cada
criatura está no seu sangue. . . .” (ver também Deu.
12:23). Essa frase “toda criatura” sugere que as referências a
sangue aplicam-se tanto ao homem quanto aos animais. Destarte, como
Atkinson assinala, “Temos aqui um lampejo muito importante revelado
quanto à essência da natureza humana. A alma e o sangue
são idênticos”.20
A razão por que a alma-nephesh é igualada ao
sangue presumivelmente é porque a vitalidade da vida-nephesh reside no sangue. No
sistema sacrifical, o sangue expiava pelo pecado por causa de sua
associação com nephesh-vida.
A matança sacrifical de um animal significava que uma nephesh-vida fora sacrificada para
expiar pelos pecados de outra nephesh-vida.
Tory Hoff mui apropriadamente faz observar que “A relação
do hebraico entre nephesh
[vida] e sangue revela que nephesh
[vida] transmite um aspecto ‘sagrado’ para a vida humana. nephesh [vida] foi uma obra de Deus
(Gên. 2:7), estava no cuidado de Deus (Pro. 24:12), estava em
Suas mãos (Jó 12:10), e a Ele pertencia (Eze. 18:4, 20).
Os hebreus criam que eram proibidos de se intrometer ou interferir com
a existência como nephesh
[vida] uma vez que era uma existência recebida além do
homem. . . . Os hebreus eram proibidos de comer carne ainda contendo
sangue porque o ato interferia com nephesh
[vida] e, portanto, tornava-se ofensivo a Deus. A equação
entre sangue e nephesh [vida]
significava que consumir sangue era uma forma de assassinato. Um estava
sustendo a própria vida [nephesh]
de uma pessoa com o nephesh
[vida] sagrado de outra”.21
A discussão precedente da
associação de nephesh-alma
com animais e sangue tem servido para esclarecer adicionalmente o
significado de “alma vivente” (Gên. 2:7) como aplicado a
Adão. Temos visto que esta frase não significa que por
ocasião da criação Deus dotou o corpo humano de
uma alma imortal, mas simplesmente que o homem tornou-se um ser vivente
em resultado do sopro divino dentro do corpo inanimado. Esta
conclusão é apoiada pelo fato de que o termo nephesh é também
empregado para descrever animais e sangue. O último igualava-se
a nephesh-alma porque era
visto como manifestação tangível da vitalidade da
vida. Antes de explorar adicionalmente o significado de nephesh-alma no Velho Testamento,
precisamos considerar o significado de “fôlego de vida” em
Gênesis 2:7.
O
Fôlego de Vida. O que é o “fôlego [neshamah] de vida” que Deus soprou
nas narinas de Adão? Alguns presumem que o “fôlego de
vida” é a alma imortal que Deus implantou no corpo material de
Adão. Essa interpretação não pode ser
legitimamente apoiada pelo significado e emprego bíblico de
“fôlego de vida” porque em parte alguma da Bíblia é
o “fôlego de vida” identificado com uma alma imortal.
Na Escritura, o “fôlego [neshamah] de vida” é o poder
transmissor de vida associado ao sopro de Deus. Assim, lemos em
Jó 33:4, “O Espírito de Deus me fez; e o sopro [ruach] do Todo-Poderoso me
dá vida”. O paralelismo entre “o Espírito de Deus” e o
“sopro do Todo-Poderoso” sugere que os dois são usados
intercambiavelmente porque ambos referem-se ao dom da vida concedido
por Deus a Suas criaturas. Outro claro exemplo se acha em Isaías
42:5: “Assim diz Deus, o Senhor que criou os céus e os estendeu
. . . que dá fôlego [neshamah]
de vida ao povo que nela está, e o espírito [ruach] aos que andam nela”. Aqui,
novamente, o paralelismo demonstra que o fôlego e o
espírito denotam o mesmo princípio animador de vida que
Deus concede a Suas criaturas.
A imagem do “fôlego de vida”
descreve de forma sugestiva o dom divino da vida a Suas criaturas,
porque o fôlego é um sinal vital da existência. Uma
pessoa que não mais respira está morta. Assim, não
é de surpreender que na Escritura o Espírito de Deus que
concede vida seja caracterizado como o “fôlego de vida”. Afinal
de contas, respirar é uma manifestação
tangível de vida. Jó declara: “Enquanto em mim estiver a
minha vida [o fôlego-neshamah,
VKJ], e o sopro [ruach] de
Deus nos meus narizes, nunca os meus lábios falarão
injustiça” (Jó 27: 3, 4). Aqui o “fôlego” humano e
o divino “sopro” [“espírito”-VKJ] são igualados, porque
respirar é visto como uma manifestação do poder
sustenedor do Espírito de Deus.
A posse do “fôlego de vida”
não confere em si mesmo imortalidade, porque, por ocasião
da morte, “o fôlego de vida” retorna para Deus. A vida deriva de
Deus, é sustida por Deus, e retorna para Deus. Essa verdade
é expressa em Eclesiastes 12:7: “O pó volta à
terra, como era, e o espírito [ruach]
volta para Deus que o deu”.
Ao descrever a morte, Jó
declara:
“Se Deus . . . para Si recolhesse o Seu espírito [ruach], e o Seu sopro [ruach], toda carne juntamente
expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34:14, 15).
A mesma verdade é expressa em Eclesiastes 12:7: “O pó
volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus que
o deu”. A respeito do dilúvio, lemos: “Pereceu toda a carne que
se movia sobre a Terra . . . Tudo o que tinha fôlego de vida [neshamah] em suas narinas, tudo o
que havia em terra seca, morreu” (Gên. 7:21, 22).
O fato de que a morte é
caracterizada como a retirada do fôlego de vida demonstra que
esse “fôlego de vida” não é um espírito ou
alma imortal que Deus concede a Suas criaturas, mas o dom da vida que
os seres humanos possuem pelo decurso de sua existência terrena.
Enquanto o “fôlego de vida” ou espírito, permanecerem, os
seres humanos são “almas viventes”. Mas quando o fôlego
parte, tornam-se almas mortas.
A ligação entre o
“fôlego de vida” e a “alma vivente” torna-se clara quando nos
lembramos que, como assinala Atkinson, “a alma do homem está em
seu sangue e, de fato, o seu sangue é a sua alma. Assim ele
é mantido em vida como uma alma viva pela inalação
do oxigênio extraído do ar, e a ciência
médica hoje sabe, logicamente, bastante sobre a
ligação entre essa absorção de
oxigênio e o sangue”.22 A cessação
da respiração resulta na morte da alma, porque o sangue,
que é igualado à alma, não mais recebe o
oxigênio que é tão vital para a vida. Isso explica
por que a Bíblia se refere 13 vezes à morte humana como
sendo morte da alma (Lev. 19:28; 21:1, 11; 22:4; Núm. 5:2;
6:6,11; 9:6, 7, 10; 19:11, 13; Ageu 2:13).
À luz da discussão
precedente, concluímos que o homem “tornou-se alma vivente”
(VKJ) por ocasião da criação, não
através da implantação de uma alma imaterial,
imortal em seu corpo material, mortal, mas mediante o princípio
animador de vida (“fôlego de vida”) a ele concedido pelo
próprio Deus. No relato da criação, a “alma
vivente” denota o princípio de vida ou o poder que anima o corpo
humano e revela-se na forma de vida consciente.
PARTE II: A
NATUREZA HUMANA COMO ALMA
Até aqui, temos examinado o
ponto de vista veterotestamentário da natureza humana à
luz da criação do homem à imagem de Deus como uma
alma vivente. Temos descoberto que os dois textos fundamentais da
criação humana, Gênesis 1:26, 27 e 2:7, não
dão lugar a uma interpretação dualística da
natureza humana com um corpo mortal e uma alma imortal. Pelo
contrário, o corpo, o fôlego de vida, e a alma
estão presentes na criação do homem, não
como entidades separadas, mas como características da mesma
pessoa. O corpo é o homem como um ser concreto; a alma é
o homem como um indivíduo vivo; o fôlego de vida ou
espírito é o homem tendo sua fonte em Deus. Para testar a
validade dessa conclusão inicial, agora examinaremos mais
detidamente o emprego mais amplo no Velho Testamento de quatro
aspectos-chave da natureza humana: alma,
corpo, coração,
e espírito.
Nosso estudo inicial do
significado de nephesh-alma
no contexto da criação demonstrou que a palavra é
empregada para designar o princípio animador da vida como
presente tanto nos seres humanos quanto nos animais. Neste ponto,
desejamos explorar o emprego mais amplo de nephesh no Velho Testamento. Uma
vez que nephesh ocorre no Velho Testamento 754 vezes e é
traduzido em 45 maneiras diferentes,23 nosso enfoque
recairá sobre os três usos principais da palavra que se
relaciona diretamente com o objeto de nossa investigação.
Alma
Como Uma Pessoa Necessitada. No seu livro da maior autoridade e
atualidade Anthropology of the Old
Testament [Antropologia do Velho Testamento] que é
virtualmente indisputável entre
eruditos de várias persuasões teológicas, Hans
Walter Wolff intitula o capítulo sobre a alma como “nephesh-Homem Necessitado”.24
A razão para esta caracterização de nephesh como “homem necessitado”
torna-se evidente quando se lêem os muitos textos que retratam nephesh-alma em
situações perigosas em proporções de vida e
morte.
Sendo que Deus foi quem fez o
homem “uma alma vivente” e que sustém a alma humana, os hebreus
quando em perigo apelavam a Deus para livrar suas almas, ou seja, suas
vidas. Davi orou: “livra do ímpio a minha alma [nephesh]”; “por amor da Tua
justiça, tira da tribulação a minha alma [nephesh]” (Sal. 143:11). O Senhor
merece ser louvado, “pois livrou a alma [nephesh] do necessitado da
mão dos malfeitores” (Jer. 20:13).
As pessoas tinham grande temor por
suas almas [nephesh] (Jos.
9:24) quando outros estavam buscando suas almas [nephesh] (Êxo. 4:19; 1 Sam.
23:15). Ele tiveram que fugir por suas almas [nephesh] (2 Reis 7:7) ou defender
suas almas [nephesh] (Est.
8:11); se não o fizessem, suas almas [nephesh] seriam totalmente
destruídas (Jos. 10:28, 30, 32, 35, 37, 39). “A alma que
pecar, essa morrerá” (Eze. 18:4, 20). Raabe pediu aos dois
espias israelitas que salvassem sua família falando em termos de
“livrareis as nossas vidas [almas-VKJ] da morte” (Jos. 2:13). Nesses
casos, é evidente que a alma que estava em perigo e necessitava
ser livrada era a vida do indivíduo.
A alma experimentava perigo
não só dos inimigos, mas também da falta de
alimento. Ao lamentar o estado de Jerusalém, Jeremias declarou:
“Todo o povo anda gemendo e à procura de pão; deram eles
as suas cousas mais estimadas a troco de mantimento para restaurar as
forças [alma-nephesh,
VKJ] (Lam. 1:11). Os israelitas resmungavam no deserto porque
não tinham
mais carne como antes no Egito. “Agora, porém, seca-se a nossa
alma [nephesh], e nenhuma
cousa vemos senão este maná” (Núm. 11:6).
O jejuar tinha
implicações para a alma porque interrompia nutrimento de
que carecia a alma. No Dia da Expiação os israelitas eram
ordenados: “afligireis as vossas almas” (Lev. 16:29) pelo jejum. Eles
se abstinham de comida para demonstrar que suas almas dependiam de
Deus tanto para o nutrimento físico quanto para a
salvação espiritual. “Muito apropriadamente”, escreve
Tory Hoff, “eles [os israelitas] eram solicitados a jejuar no Dia da
Expiação porque suas almas é que eram expiadas
mediante o derramamento de sangue [de uma alma inocente] e era o
Deus providencial que sustinha a alma, a despeito do pecado da alma”.25
O tema do perigo e
libertação associado com a alma [nephesh] permite-nos ver que a alma
no Velho Testamento era vista, não como um componente imortal da
natureza humana, mas como a condição incerta e insegura
da vida que às vezes era ameaçada de morte. Essas
situações que envolviam intenso perigo e
libertação recordavam aos israelitas que eles eram
almas [nephesh] necessitadas,
pessoas com vida cuja existência dependia constantemente de Deus
para proteção e livramento.
A
Alma Como Sede das Emoções. Sendo o
princípio animador da vida humana, a alma também atuava
como o centro de atividades emocionais. Ao falar da sunamita, 2 Reis
4:27 diz: “A sua alma [nephesh]
está em amargura”, Davi clamou ao Senhor buscando livramento de
seus inimigos, dizendo: “A minha alma [nephesh]
está profundamente perturbada . . . . Volta-Te, Senhor, e livra
a minha alma [nephesh]” (Sal.
6:3, 4).
Enquanto as pessoas estavam
esperando pela libertação de Deus, suas almas perdiam
vitalidade. Tory Hoff faz notar que “em vista de que o salmista
amiúde escrevia em face de sua experiência [de perigo], os
Salmos incluem sentenças tais como ‘desfalecia neles a alma’
(Sal. 107:5), ‘a minha alma de tristeza verte lágrimas’ (Sal.
119:28), ‘desfalece-me a alma, aguardando a Tua salvação’
(Sal. 119:81), ‘minha alma suspira e desfalece pelos átrios do
Senhor’ (Sal. 84:2), e ‘no meios destas angústias,
desfalecia-lhes a alma’ (Sal. 107:26). Jó indaga: ‘Até
quando afligireis a minha alma. . .?’ (Jó 19:2). Também
era a alma que esperaria por livramento. ‘Somente em Deus, ó
minha alma, espera silenciosa’ (Sal. 62:1). ‘Aguarda o Senhor, a minha
alma O aguarda’ (Sal. 130:5).
Sendo que o hebreu sabia que todo
o
livramento procedia de Deus, sua alma tomaria ‘refúgio’ em Deus
(Sal. 57:1) e ‘tem sede de Deus’ (Sal. 42:2; 63:1). Uma vez tenha
passado o perigo e a natureza intensa, precária da
situação houvesse findado, a alma louvaria a Deus pela
libertação recebida. ‘Gloriar-se-á no Senhor a
minha alma’ (Sal. 34:2). ‘E minha alma se regozijará no Senhor,
e se deleitará na sua salvação’ (Sal. 35:9)”.26
Estas passagens que falam da alma
como sede da emoção são interpretadas por alguns
dualistas como apoiando a noção da alma como uma entidade
imaterial ligada ao corpo e responsável pela vida emocional e
intelectual do indivíduo. O problema com essa
interpretação é, como explica Tory Hoff, que “a
alma é a ‘sede da emoção’ não mais do que
qualquer outro termo antropológico hebraico”.27
Veremos que a alma é somente um centro de emoções
porque o corpo, o coração e os rins, e outras partes do
corpo também funcionam como centros emocionais. Do ponto de
vista holístico bíblico da natureza humana, uma parte do
corpo pode muitas vezes representar o todo.
Wolff corretamente observa que o
conteúdo emocional da alma é igualado ao eu da pessoa e
não é uma entidade independente. Ele cita, como exemplo,
o Salmo 42:5, 11 e 43:5 em que se encontra o mesmo cântico de
lamento e auto-exortação: “Por que estás abatida,
ó minha alma? por que te perturbas dentro em mim? Espera em
Deus, pois ainda o louvarei”. “Aqui”, Wolff escreve, “nephesh [alma] é o eu da
vida necessitada, sedenta de desejo”.28 Nada há
nestas passagens que sugira que a alma é uma parte imaterial da
natureza humana que está equipada com personalidade e
consciência e é capaz de sobreviver à morte.
Notaremos que a alma morre quando o corpo morre.
A
Alma Como Sede da Personalidade. A alma [nephesh] é vista no Velho
Testamento não somente como a sede das emoções,
mas também como a sede da personalidade. A alma é a
pessoa como um indivíduo responsável. Em Miquéias
6:7 lemos: “Darei o meu primogênito pela minha
transgressão? o fruto do meu corpo pelo pecado da minha alma [nephesh]?” A palavra hebraica
traduzida aqui por “corpo” é beten,
que significa barriga ou ventre. O contraste aqui não é
entre corpo e alma. Ao comentar este texto, Dom Wulstan Mork escreve:
“O sentido não é que a alma seja uma causa humana do
pecado, com o corpo como o instrumento da alma. Antes, o nephesh, a pessoa viva integral,
é a causa do pecado. Portanto, neste verso, a responsabilidade
pelo pecado é atribuída à nephesh como a pessoa”.*29
Encontramos a mesma idéia
em vários textos que discutem o pecado e a culpa. “Quando
alguém [“uma alma-nephesh”-VKJ]
pecar por ignorância . . .” (Lev. 4:2); “Quando alguém
[“uma alma-nephesh”-VKJ] pecar
nisto. . . levará a sua iniqüidade” (Lev. 5:1); “Mas
a pessoa [“alma-nephesh-VKJ]
que fizer alguma cousa atrevidamente . . . tal pessoa [“alma-nephesh”-VKJ] será eliminada
do meio do seu povo” (Núm. 15:30). “Eis que todas as almas [nephesh] são minhas; .
. . a alma [nephesh] que
pecar, essa morrerá” (Eze. 18:4). É evidente que em
textos como estes, a alma é a pessoa responsável que
pensa, deseja e deve responder por sua conduta.
Qualquer atividade física
era empreendida pela alma porque tal atividade presumia uma pessoa
vivente, pensante e ativa. “O hebraico não dividia e
atribuía atividades humanas. Qualquer ato era da nephesh completa em
ação, daí, da pessoa integral”.30 Como
adequadamente expressa W. D. Stacey, “nephesh
sofria, tinha fome, e pensava porque cada uma dessas
funções requeria a personalidade integral para
realizá-la, e a distinção entre o emocional,
físico e mental não era feita”.31
No Velho Testamento a alma e o
corpo são duas manifestações da mesma pessoa. A
alma inclui e presume o corpo. “De fato”, escreve Mork, “os antigos
hebreus não podiam conceber uma sem a outra. Aqui não
havia a dicotomia grega de alma e corpo, de duas substâncias
opostas , mas uma unidade, homem, que é bashar [corpo] de um aspecto e nephesh [alma] de outro. Bashar, pois, é a realidade
concreta da existência humana, nephesh
é a personalidade da existência humana”.32
A
Alma e a Morte. A sobrevivência da alma no Velho
Testamento liga-se à sobrevivência do corpo, visto que o
corpo é uma manifestação exterior da alma. Isso
explica por que a morte de uma pessoa é muitas vezes descrita
como a morte da alma. “Quando ocorre a morte”, escreve Johannes
Pedersen, “então é a alma que se priva de vida. A morte
não pode atacar o corpo ou quaisquer outras partes da alma sem
afetar a inteireza da alma. Portanto, é também dito que
‘matar uma alma’ ou ‘ferir uma alma’ (Núm. 31:19; 35:14, 30;
Jos. 20:3, 9); pode também ser usado para ‘ferir alguém
com respeito à alma’, isto é, ferir alguém de modo
que a alma seja morta (Gên. 37:21; Deu. 19:6, 11; Jer. 40:14,
15). Não pode haver dúvida de que é a alma que
morre, e todas as teorias tentando negar este fato são falsas.
É deliberadamente dito tanto que a alma morre (Juí.
16:30; Núm. 23:10 et al.), quanto que é destruída
ou
consumida (Eze. 22:25, 27), e que é extinta (Jó 11:20)”.33
Leitores da Bíblia em
inglês [ou português] podem questionar a validade da
declaração de Pedersen de que a alma morre, porque a
palavra “alma” não ocorre nos textos que ele cita. Por exemplo,
ao falar das cidades de refúgio, Números 35:15 traz:
“para que nelas se acolha aquele que matar alguém [nephesh] involuntariamente”. Uma
vez que a palavra “alma-nephesh”
não ocorre na maioria das traduções das
Bíblias vernáculas, alguns podem alegar que o texto
está falando de matar o corpo e não a alma. A verdade,
porém, é que nephesh
é encontrada no hebraico, mas os tradutores geralmente
preferiram verter por “pessoa”, presumivelmente por causa de crerem que
a alma é imortal e não pode ser morta.
Em alguns casos, os tradutores
verteram nephesh-alma com
pronomes pessoais. Leitores das versões vernáculas
não têm meios de saber que os pronomes apresentam-se
como a alma-nephesh. Por
exemplo, um dos textos citados por Pedersen é Deuteronômio
19:11, que na Versão Almeida Revista e Atualizada
(edição de 1969) assim reza: “Mas, havendo alguém
que aborrece a seu próximo, e lhe arma ciladas, e se levanta
contra ele, e o fere de golpe mortal, e se acolhe a uma destas cidades.
. .” A frase “o fere de golpe mortal” no hebraico reza “fere a alma-nephesh mortalmente”. Pedersen cita
os textos da Bíblia hebraica e não das
traduções vernáculas. Destarte, sua
declaração de que “a alma morre” reflete com
precisão o que o texto hebraico transmite. Ademais, há
textos mesmo na versão vernácula que claramente falam da
morte da alma. Por exemplo, Ezequiel 18:20 reza: “A alma que pecar,
essa morrerá” (ver também 18:4).
A morte é vista no Velho
Testamento como o esvaziamento da alma de toda a sua vitalidade e
força. “Ele derramou a sua alma na morte” (Isa. 53:12). “Ele
derramou” é versão do hebraico arah que significa
“esvazia, desnudar, ou deixar a descoberto”. Isso significa que o Servo
Sofredor esvaziou-Se de toda a vitalidade e força da alma. Na
morte, a alma não mais funciona como o princípio animador
da vida, mas descansa na sepultura.
“A morte”, escreve Pedersen,
“é uma alma destituída de vigor. Portanto, os mortos
são chamados ‘os fracos’ (rephaim).
‘Como nós estás fraco’ é a saudação
com que os reis caídos dos babilônios é recebido no
reino dos mortos (Isa. 14:10)”.34 O corpo morto
é ainda uma alma, mas uma alma sem vida. Os nazireus não
tinham permissão de contaminar-se por chegar perto “dum
cadáver”. Do mesmo modo, os sacerdotes não deviam
contaminar-se aproximando-se das almas mortas de seus parentes (Lev.
21:1, 11; Núm. 5:2; 9:6, 7, 10).
A sorte da alma está ligada
à sorte do corpo. É-nos dito repetidamente, sobre o
episódio de Josué conquistar as várias cidades
além do Jordão, que “destruiu-os totalmente, e a todos os
que nela estavam” [“destruiu toda alma-nephesh”, VKJ] (Jos. 10:28, 30,
31, 34, 36, 38). A destruição do corpo é vista
como a destruição da alma. “Na Bíblia”, escreve
Edmund Jacob, “nephesh
refere-se somente ao cadáver antes de sua
dissolução final e enquanto tem aspectos
distinguíveis”.35 Quando o corpo é
destruído e consumido de modo que seus aspectos não mais
sejam reconhecidos, então a alma não mais existe, porque
“o corpo é a alma em sua forma exterior”.36 Por outro
lado, quando o corpo é posto a descansar na sepultura com os
pais, a alma está também em repouso e jaz
impertubável (Gên. 15:15; 25:8; Juí. 8:21; 1
Crô. 29:28).
A visão do Velho Testamento
ao considerar a alma como cessando de funcionar por ocasião da
morte, como o princípio animador da vida do corpo, suscita
algumas
questões interessantes com respeito à
declaração de Jesus: “Não temais os que matam o
corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode
fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mat. 10:28). Este
texto parece sugerir que a morte do corpo não acarreta
necessariamente a morte da alma. Ele é examinado no
próximo capítulo que trata do ponto de vista do Novo
Testamento com respeito à natureza humana.
A
Partida da Alma. Adicionalmente às passagens que acabamos
de considerar, em que a alma-nephesh
associa-se à morte, pelo menos dois textos merecem especial
consideração porque falam da partida e retorno da alma. O
primeiro é Gênesis 35:18, que fala que a alma de Raquel
saía-lhe ao morrer, e a segunda é 1 Reis 17:21, 22, que
fala da alma do filho da viúva que lhe retornava. Estes dois
textos são utilizados para apoiar o ponto de vista de que na
morte a alma deixa o corpo e retorna ao corpo por ocasião da
ressurreição.
Em seu livro Death and the Afterlife [A morte e
o além túmulo], Robert A. Morey apela a esses dois textos
para apoiar sua crença na sobrevivência da alma diante da
morte do corpo. Ele escreve: “Se os autores da Escritura não
cressem que a alma deixou o corpo por ocasião da morte e
retornaria ao corpo quando da ressurreição, não
teriam empregado tal fraseologia [a partida e retorno da alma]. A
maneira de expressão deles revela que criam que o homem por fim
sobrevivia à morte do corpo”.37
Pode tal conclusão ser
derivada legitimamente desses dois textos? Examinemos mais detidamente
cada um deles. Ao descrever o parto de Raquel, Gênesis 35:18
declara: “Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni;
mas seu pai lhe chamou Benjamim”. Interpretar a sentença
“sair-lhe a alma” como significando que a alma imortal de Raquel estava
deixando seu corpo enquanto ela morria vai de encontro ao ensino
coerente do Velho Testamento de que a alma morre com o corpo. Como Hans
Walter Wolff corretamente assinala, “Não devemos deixar de
observar que a nephesh [alma]
nunca recebe um sentido de um indestrutível cerne da
existência, em contraste com a vida física, e mesmo capaz
de viver quanto eliminada dessa vida. Quando ocorre uma
menção ao ‘sair’ (Gên. 35:18) da nephesh de um homem, ou de seu
‘retorno’ (Lam. 1:11), a idéia básica é a
noção concreta da cessação e
restauração da respiração”.38
A sentença “sair-lhe a
alma” muito provavelmente significa que “sua respiração
estava cessando”, ou, poderíamos dizer, ela estava dando o seu
último suspiro. É importante observar que o substantivo
“alma-nephesh” deriva do verbo
que tem a mesma raiz com o sentido de “respirar”, “inspirar ar”. O
soprar do fôlego de vida resultou no homem tornar-se uma alma
vivente, um organismo que respira. A partida do fôlego de vida
resulta numa pessoa a tornar uma alma morta (“porque morreu”). Assim,
como Edmund Jacob explica, “A partida da nephesh é uma
metáfora para a morte; um homem morto é alguém que
cessou de respirar”.39
Tory Hoff oferece um
comentário semelhante: “Mediante a imagem concreta da partida do
fôlego, o texto comunica que Raquel estava no processo de morrer
enquanto dava nome a seu recém-nascido. Ela não estava
ainda morta no sentido moderno da palavra, mas aproximava-se da morte a
cada momento. Estava perdendo a nephesh
vital que ruah
[respiração] sustinha até ao ponto em que em breve
partiria da existência da nephesh”.40
Concluímos que a partida da alma é uma metáfora
para a morte, muito provavelmente associada à
interrupção do processo de respiração. Esta
conclusão é apoiada pelo segundo texto, 1 Reis 17:21, 22,
que agora examinaremos.
O
Retorno da Alma. Ao relatar a história do despertar
à vida do filho da viúva de Sarepta pelo profeta Elias, 1
Reis 17:20-22 assim reza: “E estendendo-se três vezes sobre o
menino, clamou ao Senhor, e disse: Ó Senhor meu Deus, rogo-Te
que faças a alma deste menino tornar a entrar nele. E o Senhor
atendeu à voz de Elias; e a alma do menino tornou a entrar nele,
e reviveu”. Deve-se admitir que tomado isoladamente este texto poderia
ser tido como significando que a alma deixa o corpo por ocasião
da morte e nesse caso foi recuperada pela oração de
Elias. Esta conclusão obviamente apoiaria a crença de que
a alma é imortal e sobrevive à morte do corpo.
Três principais
razões nos levam a rejeitar esta interpretação.
Primeiro, nem nesta passagem nem em qualquer outra da Bíblia
há qualquer indicação de que a alma humana
é imortal. Pelo contrário, temos visto que a alma
é o princípio que anima a vida manifesta no corpo,
enquanto o corpo esteja vivo.
Em segundo lugar, no verso 17, a
morte do menino é descrita como a cessão da
respiração: “Não restou qualquer fôlego
nele” [VKJ]. Isto sugere que o cessar de respirar é que causou a
partida da alma-nephesh, de
modo que a recuperação da respiração
provocou o retorno da alma. Como Edmund Jacob ressaltou: “Em 1 Reis
17:17 a falta de neshamah
[respiração] provoca a partida da nephesh, que retorna quando o
profeta concede a respiração ao menino novamente, pois a nephesh somente é o que faz
uma criatura vivente tornar-se um organismo vivo”.41 Uma vez
que a respiração é a manifestação
exterior da alma, a cessação ou restauração
da respiração causa a partida ou retorno da alma.
Em terceiro lugar, no hebraico, o
vs. 21 literalmente assim reza: “Que a alma da criança adentre
novamente suas partes interiores”. Esta leitura, que se acha à
margem da versão AV, apresenta uma construção
lingüística diferente. O que retorna às partes
interiores é a respiração. A alma como tal nunca
se liga a algum órgão “interior” do corpo. O retorno da
respiração às partes interiores resulta no
reavivamento do corpo, ou, poderíamos dizer, faz com que se
torne uma vez mais uma alma vivente.
Basil Atkinson muito
perceptivamente observa que “o escritor não pensava na alma como
sendo a criança real ou carregando sua personalidade. A
criança jazia morta sobre a cama e a alma retornou à
criança. Elias não pensava em termos de como em modernos
funerais se ouve, ‘não mais posso pensar nele como aqui’, nem o
disse”.42
À luz das
considerações acima, concluímos que a
declaração “a alma do menino tornou a entrar nele”
simplesmente significa que a criança recuperou a vida, ou
começou a respirar novamente. É desta forma que os
tradutores da New International Version entenderam a cláusula ao
traduzirem, “a vida do menino retornou-lhe”. Esta é uma maneira
perfeitamente inteligível de entender o texto e está em
sintonia com o resto do ensino veterotestamentário.
Conclusão.
Nosso estudo do significado de nephesh-alma no Velho Testamento tem
mostrado que nem uma única vez a palavra transmite a
idéia de uma entidade imaterial, imortal capaz de existir
à parte do corpo. Pelo contrário, descobrimos que a
alma-nephesh é o princípio animador da vida, o
fôlego de vida, que está presente tanto nos seres humanos
quanto nos animais. A alma identifica-se com o sangue porque este
último é visto como uma manifestação
tangível da vitalidade da vida. Por ocasião da morte, a
alma cessa de funcionar como princípio animador da vida do
corpo. O destino da alma liga-se inexoravelmente ao destino do corpo
porque o corpo é a manifestação da alma.
PARTE III:
NATUREZA HUMANA COMO CORPO E CARNE
Nosso estudo do entendimento do
Velho Testamento quanto à alma já estabeleceu que o corpo
e a alma são uma unidade indivisível, ou seja, o homem
visto de duas diferentes perspectivas. O corpo é a realidade
física da existência humana, a alma é a vitalidade
e personalidade da existência humana.
É lamentável que
durante boa parte da história cristã o aspecto
físico da natureza humana tenha sido depreciado e até
denegrido como indesejável e mau. A palavra “carne” tem sido
associada com imoralidade. Os “pecados da carne” invariavelmente
significam indulgências pecaminosas. A razão para esse
ponto de vista negativo é que “carne” é sinônimo de
corpo, e o corpo, segundo o dualismo clássico, que influenciou
enormemente a vida e pensamento cristãos ao longo dos
séculos, é mau, ou, pelo menos, suspeito.
É verdade que na
Bíblia “a carne” não representa o aspecto mais elevado e
nobre da natureza humana. Paulo em especial fala da inimizade que
existe entre a carne e o espírito. Mas isso não significa
que Paulo ou o resto da Bíblia condenem a carne ou o corpo como
eticamente maus per se. Antes, a carne é empregada
metaforicamente para representar a pessoa não-regenerada como um
todo, agindo segundo seus desejos e propensões pecaminosos
naturais.
Historicamente, muito da
espiritualidade e religiosidade cristãs tem sido influenciado
por uma visão negativa do corpo como sede do pecado. A
mortificação da carne por privar o corpo de alimento,
agasalho, ou mesmo do prazer físico de um banho morno, tem sido
visto como indispensáveis para cultivar a vida espiritual.43
Destarte, para fortalecer nossa espiritualidade cristã, é
imperativo recuperar o aspecto holístico bíblico da
natureza humana, especialmente a perspectiva positiva física de
nossa existência.
O
Corpo Criado Por Deus. O relato da criação
propicia o ponto inicial lógico para o estudo da atitude
bíblica para com o aspecto físico da natureza humana. A
história nos conta que a matéria, inclusive o corpo
humano, foi criada por Deus. A matéria não é um
princípio eterno do mal antagonístico a Deus, como no
Timaeus de Platão, mas parte da boa criação de
Deus para realizar Seu eterno propósito. Toda a ordem
física, inclusive o corpo humano, foi criada por Deus segundo o
Seu eterno propósito.
Repetidamente, ao longo do relato
da criação, é-nos dito que Deus considerou o que
havia criado “e viu que era bom” (Gên. 1:10, 12, 18, 21, 25).
Após ter criado o homem à Sua própria imagem Deus
admirou tudo o que havia criado e declarou que era “muito bom”
(Gên. 1:31). À base do relato bíblico da
criação, podemos assegurar que este mundo material
é a boa criação de Deus e tem um lugar adequado em
Seu eterno propósito.
É importante observar
também que Deus criou o homem, não de alguma
substância espiritual divina, mas “do pó da terra”
(Gên. 2:7). “Não há qualquer parte do homem que
seja de origem divina e que desça para assumir residência
temporária no ‘corpo’ alienado. O homem de modo algum participa
da natureza divina. Ele é feito do pó da terra, e seu
relacionamento com Deus não é o de uma chama de fogo ou
de uma gota d‘água no oceano, mas o de uma imagem do original.
Assim, nada há no homem que estabeleça uma identidade ou
mesmo uma continuidade entre ele e Deus, como a ‘alma’ racional na
perspectiva ‘religiosa [dualística]’. Em vez de identidade,
há meramente semelhança; em vez de continuidade,
há uma radical descontinuidade, como entre a criatura e o
Criador”.44
O
Corpo Físico Não é Mau. O fato de que o
corpo humano foi criado de substância material da terra
não significa que a matéria é a fonte da maldade
na vida humana. No dualismo platônico, a matéria é
a fonte e origem do mal. O mal é identificado com a
matéria, que é um princípio eterno independente do
Deus bom e a Ele antagônico. A identificação do mal
com a matéria tem levado a uma visão pessimista do corpo
e da existência física. É lamentável que
esse ponto de vista pessimista do corpo haja influenciado tão
fortemente o pensamento e prática cristãos.
No relato da criação
de Adão e Eva, não existe o mínimo indício
de que o corpo físico deve ser culpado por sua
desobediência e queda. Uma tradição cristã
popular interpreta o pecado original como consistindo de um ato sexual
ilícito. Tal interpretação é totalmente
destituída de apoio bíblico. A tentação em
que Adão e Eva caíram não foi o desejo de ter
sexo, mas de agir como se eles fossem Deus. O sexo é a boa
criação de Deus do mesmo modo que todas as demais
funções fisiológica do corpo humano.
A tentação foi,
“sereis como Deus” (Gên. 3:5). A origem do pecado na vida humana
nada tem que ver com intercurso sexual ou qualquer outro ato
físico do corpo. Antes, deve ser encontrado no fato de que o
homem sucumbiu à tentação de tentar ser como Deus,
em vez de ser um refletor da imagem de Deus. Esta tem sido a
manifestação fundamental do pecado, ou seja, colocar o
eu, antes que Deus, no centro de tudo.
Na Bíblia, a origem do
pecado é encontrada não em algum defeito na
constituição física do corpo humano, mas na
escolha errada, egoísta, feita pelos seres humanos livres. A
humanidade hoje acha-se numa condição de pecado porque as
pessoas levam vidas centralizadas no eu, antes que tendo a Deus como o
centro. Devido a esse egoísmo, as tremendas possibilidades
inerentes a nossa natureza humana criada à imagem de Deus
têm-se realizado numa forma desastradamente errada. “O que
são possibilidades sagradas tornaram-se realidades
demoníacas”.45
O relato bíblico da
criação e Queda da humanidade localiza a origem do
pecado, não no corpo, mas na mente, ou seja, no desejo de agir e
pensar em si mesmo como sendo Deus. O pecado é volitivo, um ato
da vontade, e não uma condição biológica do
corpo. A Bíblia tem uma visão salutar do corpo como o
objeto da criação e redenção divinas. Este
ponto se torna mais claro ao examinarmos o significado
veterotestamentário e emprego de “carne-bashar”.
A
Carne Como Substância do Corpo. O termo hebraico preciso
para o corpo inteiro é geviyyah,
que é raro. É empregado uma dúzia de vezes para
referir-se a um corpo vivo ou morto (Gên. 47:18; 1 Reis 31:10,
12; Eze. 1:11, 23; 1 Sam. 31:10, 12; Dan. 10:6). O termo comum
empregado na Bíblia hebraica para designar o corpo é bashar, que tecnicamente significa
“carne”. Bashar ocorre 266 vezes no Velho Testamento hebraico. Seu
significado mais comum é o de “carne” que constitui o corpo. Um
exemplo desse emprego é Gênesis 2:21-24: “Então o
Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu; tomou
uma das suas costelas, e fechou o lugar com carne [bashar]. E a costela que o Senhor
Deus tomara ao homem, transformou-a numa mulher, e lha trouxe. E disse
o homem: Esta, afinal, é osso dos meus ossos, e carne da minha
carne [bashar]”.
Outro exemplo se encontra no Salmo
79:2 onde o salmista lamenta: “Deram os cadáveres dos teus
servos por cibo às aves dos céus, e a carne [bashar] dos teus santos às
feras da terra”. O paralelismo indica que a carne [bashar] é empregada como
sinônimo de corpo. Bashar denota
a substância carnal de que os seres humanos têm em comum
com os animais. Tanto o homem quanto os animais são carne. O
relato do dilúvio ressalta isso: “Porque estou a derramar
águas em dilúvio sobre a terra para consumir toda carne [bashar] em que há
fôlego de vida debaixo dos céus” (Gên. 6:17; cf.
6:19; 9:17). “Os animais que estão contigo, de toda carne [bashar], assim aves, como gado, e
todo réptil que rasteja sobre a terra, faze sair a todos”
(Gên. 8:17).
Os exemplos acima indicam que
“carne-bashar” significa a
substância do corpo que o homem tem em comum com as ordens
inferiores dos animais. A carne é criada por Deus que pode
destruí-la, bem como curá-la e restaurá-la.
A
Carne Como o Homem Integral. Há textos em que a
carne-bashar significa a pessoa integral, não somente uma
substância carnal, mas o ser racional e emocional. “Ó
Deus, tu és o meu Deus forte, eu te busco ansiosamente; a minha
alma tem sede de Ti; meu corpo [bashar]
Te almeja” (Sal. 63:1). “A minha alma suspira e desfalece pelos
átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne [bashar] exultam pelo Deus vivo!”
(Sal. 84:2). Jó refere-se a quem jaz no leito de enfermidade:
“Ele sente as dores de apenas seu próprio corpo [bashar], e só a seu respeito
sofre a sua alma” (Jó 14:22).
O paralelismo nestes textos entre
alma e carne indica que a carne, à semelhança da alma,
pode funcionar como a sede das emoções. A carne e a alma
não são duas formas diferentes de existência, mas
duas manifestações da mesma pessoa. O ponto de vista
holístico bíblico torna possível empregar carne e
alma intercambiavelmente porque são partes do mesmo organismo.
A carne é também empregada para denotar o parentesco que
une as pessoas consangüineamente ou como membros da família
humana. Assim Judas aconselha a seus irmãos para não
matarem José, “não ponhamos sobre ele a nossa mão,
pois é nosso irmão e nossa carne [bashar]” (Gên. 37:27). Uma
fórmula freqüente para expressar a consagüineidade
é “meu osso e minha carne” (Gên. 29:14; Juí. 9:2; 2
Sam. 5:1; 19:12). No relato do Dilúvio, “toda carne” (Gên.
6:17, 19) denota o vínculo mais amplo da família humana.
A
Carne Como Natureza Humana em Sua Fraqueza. A carne-bashar é também
empregada na Bíblia para caracterizar a fraqueza e fragilidade
da natureza humana. Hans Walter Wolff intitulou o capítulo sobre
“Carne-bashar” como “O homem
em Sua Enfermidade”.46 O título reflete o
freqüente emprego de “carne” no Velho Testamento para indicar a
“nulidade” humana aos olhos de Deus. Lemos em Jó 34:14, 15: “Se
Deus pensasse apenas em Si mesmo, e para Si recolhesse o Seu
espírito e o Seu sopro, toda carne [bashar] juntamente expiraria e o
homem voltaria para o pó”. Porque os seres humanos são
carne (fracos e frágeis), Deus Se recorda deles: “Ele,
porém, que é misericordioso, perdoa a
iniqüidade, . . . Lembra-Se de que eles são carne [bashar], vento que passa e
já não volta” (Sal. 78:38, 39).
Em relação com Deus,
o homem é carne, uma criatura dependente Dele para a
contínua existência. “Toda a carne [bashar] é erva, e toda
a sua glória como a flor da erva” (Isa. 40:6). Por serem os
humanos carne, acham-se impotentes diante de Deus. “Em Deus . . . ponho
a minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o mortal [“a
carne-bashar, VKJ]?” (Sal.
56:4, cf. Isa. 31:3). Conseqüentemente, é imperativo que os
seres humanos confiem em Deus e não em sua “carne” (recursos
humanos). “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal [bashar] o seu braço” (Jer.
17:5). Neste texto, “carne-bashar”
denota a oposição humana a Deus. A carne não
é intrinsecamente má do ponto de vista ético. Pode
ser fraca, mas não inerentemente má em si. Quando um
“coração de pedra” é transformado num
“coração de carne”, torna-se um coração que
obedece a Deus (Eze. 11:19). Por causa de seus dotes naturais, a carne
pode tornar-se orgulhosa, iludir-se e conseqüentemente tornar-se
antagônica a Deus. O último significado transfere-se ao
Novo Testamento onde Paulo o desenvolve mais do que outros autores.
Conclusão.
Nosso estudo do significado e emprego de “carne-bashar” no Velho Testamento revela
que a palavra geralmente é empregada para descrever a realidade
concreta da existência humana da perspectiva de sua fraqueza e
fragilidade. Contrariamente ao dualismo clássico, o Velho
Testamento nunca vê a carne e a alma como duas formas diferentes
de existência. Antes, são manifestações da
mesma pessoa e, conseqüentemente, muitas vezes são
empregadas intercambiavelmente. Um bom exemplo é o Sal. 84:2,
onde a alma, o coração e a carne todas expressam o mesmo
anseio por Deus: “A minha alma suspira e desfalece pelos átrios
do Senhor; o meu coração e a minha carne [bashar] exultam pelo Deus vivo!” Na
perspectiva do Velho Testamento quanto à natureza humana nada
há que seja meramente físico. Qualquer parte
física do corpo humano pode expressar também
funções psicológicas.
O ponto de vista holístico
da natureza humana tornou possível aos autores bíblicos
verem o corpo e a alma como expressões do mesmo organismo.
Pedersen corretamente faz notar que “a proposição de que
a alma é carne, é indissoluvelmente ligada com o inverso
disso, como seja, que a carne é alma”.47 Os dois
estão indissoluvemente ligados porque o corpo é a forma
exterior da alma e a alma é a vida interior do corpo.
PARTE IV: A
NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO
No ponto de vista bíblico
da natureza humana, o coração é o
órgão central e unificador da vida pessoal. As palavras
hebraicas traduzidas por “coração” são leb e
lebab, que se acham juntas 858 vezes.48 Isso torna o
coração o termo mais comum dentre todos os empregados
para descrever a natureza humana. Walther Eichrodt faz notar que
“dificilmente há um processo espiritual que não possa ser
relacionado de algum modo com o coração. É tornado
o órgão igualmente do sentimento, atividades
intelectuais, e a ação da vontade”.49
O coração no
pensamento bíblico é a fonte da vida individual, a
derradeira origem das energias físicas, intelectuais, emocionais
e volitivas, e, conseqüentemente, a parte da pessoa que
normalmente tem contato com Deus. Nos recessos do coração
estão os pensamentos, as atitudes, os temores, e as
esperanças que determinam a personalidade ou caráter do
indivíduo. Muitas das funções do
coração correspondem às funções da
alma. Isso se dá porque no ponto de vista bíblico da
natureza humana, nenhuma distinção radical existe entre
os vários aspectos do indivíduo.
O
Coração é a Sede das Emoções.
Todas as emoções de que uma pessoa é capaz
são atribuídas ao coração. “O
coração pode ser ou estar alegre (Pro. 27:11; Atos
14:17), triste (Nee. 2:2), perturbado (2 Reis 6:11), corajoso (2 Sam.
17:10), desanimado (Núm. 32:7), temeroso (Isa. 35:4), invejoso
(Pro. 23:17), confiante (Pro. 31:11), generoso (2 Crô. 29:31),
movido pelo ódio (Lev. 19:17) ou amor (Deu. 13:3)”.50
As emoções do
coração são retratadas vívida e
concretamente. Diz-se que o coração desfalece (Gên.
42:28), desmaia (Gên. 45:26), excita-se (Sal. 38:10), estremece
(1 Sam. 28:5), agita-se (Prov. 23:17; Deu. 19:6), adoece (Pro. 13:12).
O estado do coração determina toda
manifestação da vida. “O coração alegre
aformoseia o rosto, mas com a tristeza do coração o
espírito se abate” (Pro. 15:13). Mesmo a saúde é
afetada pela condição do coração. “O
coração alegre é bom remédio, mas o
espírito abatido faz secar os ossos” (Pro. 17:22).
As
Partes Íntimas Como Sede das Emoções. Para
efeito de clareza, devemos acrescentar que a sede das
emoções é encontrada não somente no
coração, mas também nas partes íntimas do
corpo humano, referidas em hebraico pelo termo qereb, “intestinos”. É
impressionante como o Velho Testamento considera algumas dessas partes
íntimas do corpo como o local e fonte das capacidades humanas
superiores. Como Hans Walter Wolff ressalta, “As partes íntimas
do corpo e seus órgãos são ao mesmo tempo o
portador dos impulsos éticos e espirituais do homem”.51
Uns poucos exemplos servem para
ilustrar este ponto. Jeremias pergunta ao povo de Jerusalém:
“Até quando hospedarás contigo os teus maus pensamentos?”
(Jer. 4:14). Aqui, a expressão “hospedarás contigo” traz qereb-nos intestinos”, como a
localização dos maus pensamentos. Provérbios 23:16
diz: “Exultará o meu íntimo [“rins-kelayot”, VKJ], quando os Teus
lábios falarem cousas retas”. O salmista agradece a Deus por
aconselhá-lo e porque “durante a noite o meu
coração [“rins-kelayot”-VKJ]
me ensina” (Sal. 16:7).
Noutra parte, o salmista associa
os rins com o coração como os órgãos mais
sensíveis: “Quando o coração se me amargou e as
entranhas [“rins-kelayot”-VKJ]
se me comoveram” (Sal. 73:21). Aqui os rins agem como consciência
do indivíduo. O fígado também pode servir para
expressar profunda dor. Jeremias lamenta: “Com lágrimas se
consumiram os meus olhos, turbada está a minha alma, o meu
coração [“fígado-kabed”-VKJ]
se derramou de angústia por causa da calamidade da filha do meu
povo”.
Essa breve digressão sobre
as partes interiores do corpo teve intenção de demonstrar
que estas podem agir como a sede das emoções, do mesmo
modo que o coração. Isso é possível porque
no pensamento holístico bíblico uma parte da pessoa pode
às vezes representar o organismo inteiro.
O
Coração Como Sede do Intelecto. No maior
número de casos, o coração na Bíblia denota
o centro da vida intelectual, precisamente o que atribuímos
à cabeça ou ao cérebro. Ao contrário de
nossa cultura ocidental, onde o coração é
associado primariamente com emoções e sentimentos, na
Bíblia o coração é o centro de
raciocínio da pessoa que determina o que ela é: “Porque
assim como imagina em sua alma, assim ele é” (Prov. 23:7).
Provérbios 15:14 descreve a
função essencial do coração no sentido
bíblico: “O coração entendido procura o
conhecimento”. O coração busca o conhecimento não
meramente por causa do conhecimento, mas para capacitar o
indivíduo a tomar decisões morais responsáveis,
como se vê particularmente na literatura de sabedoria (99 vezes
somente em
Provérbios, 42 vezes em Eclesiastes, e 51 vezes no altamente
didático livro de Deuteronômio).52
A grande sabedoria de
Salomão consistia no fato de que ele não pediu por longa
vida ou riquezas, mas por um coração entendido:
“Dá, pois, ao teu servo coração compreensivo para
julgar a Teu povo para que prudentemente discirna entre o bem e o mal;
pois quem poderia julgar a este grande povo?” (1 Reis 3:9). O
coração entendido que Salomão solicitou é o
que chamaríamos de uma mente com discernimento. Por causa de seu
caráter concreto, a língua hebraica dificilmente pode
expressar a idéia de “pensar”, exceto para a sentença
“disse contigo” [“dizer no coração”-VKJ]
(Gên. 27:41; Sal. 10:6). É com o coração que
uma pessoa planeja (Pro. 16:9), busca conhecimento, compreende (Ecl.
8:16), e medita sobre as profundas coisas da vida (Sal. 4:4).
Sendo o centro da razão, o
coração é também o centro da vontade e,
daí, da vida moral. O coração pode planejar coisas
perversas (Pro. 6:18) e tornar-se corrompido (Pro. 11:20). Pode
elevar-se com orgulho (Deu. 8:14), endurecer-se (Zac. 7:12), teimar
(Jer. 3:17), ou desviar-se de Deus (1 Reis 11:2). Por outro lado, o bom
coração é perfeito (1 Reis 8:61), ou
inculpável (Sal. 119:80), puro (Sal. 51:10), reto (Sal. 32:11).
O coração pode ser purificado (Sal. 73:13) ou renovado
(Eze. 18:31). Um novo coração torna possível
internalizar a vontade de Deus como revelada em Sua lei (Eze. 11:19;
36:26).
O
Coração Se Comunica Com Deus. Como o centro do
raciocínio da personalidade humana, o coração
é capaz de comunicar-se com Deus. O coração fala a
Deus (Sal. 27:8), recebe Sua palavra (Deu. 30:14), e confia Nele (Sal.
28:7). Deus pode dar ao homem um coração entendido (1
Reis 3:9) ou retirar todo entendimento (Jó 12:24). Para Seus
misteriosos propósitos, Deus pode endurecer o
coração (Êxo. 4:21) ou pode amolecê-lo (Esd.
6:22).
Sendo que em resultado da Queda, o
coração é inclinado para o mal, a
transformação do coração ocorre pela divina
graça. Deus promete escrever a Sua lei nos
corações humanos (Jer. 31:33) e criar um novo
coração nos seres humanos (Sal. 51:10). Ele
removerá o coração endurecido e o
substituirá com um coração receptivo (Eze. 36:26).
No Novo Testamento nos é dito que Deus derramou o Seu amor nos
corações humanos (Rom. 5:5). Cristo habita no
coração humano (Efé. 3:17) e Sua paz ali reina
(Col. 3:15).
Conclusão.
Esta breve pesquisa das funções do coração
no Velho Testamento mostra que o coração é o
centro e fonte de todas as atividades religiosas, intelectuais e
morais. Mais do que qualquer outro termo veterotestamentário, o
coração expressa o centro mais profundo da
existência humana, o que uma pessoa realmente é no mais
íntimo de seu ser. Como declarado em 1 Samuel 16:7, “O homem
vê o exterior, porém o Senhor, o coração”.
Em muitas maneiras, o
coração é o centro unificador da pessoa integral,
corpo e alma. Algumas das funções do
coração sobrepõem-se com aquelas da alma, mas isto
não surpreende porque segundo a perspectiva holística
bíblica, não ocorre distinção radical entre
a alma e o coração. Jesus disse: “Amarás o Senhor
Teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de
todo o teu entendimento” (Mat. 22:37).
“O coração”, escreve
Pedersen, “é a totalidade da alma como um poder de
caráter e operacional. . . . nephesh
[e a alma na soma de sua totalidade, tal como se apresenta; o
coração é a alma em seu valor mais íntimo”.53
O que é dito a respeito da alma muitas vezes pode ser aplicado
ao coração. A unidade funcional que encontramos entre o
corpo, a alma e o coração nega o ponto de vista
dualístico da natureza humana, que separa a alma do corpo. O
fato de que as funções espirituais e morais da natureza
humana, que os dualistas vêem como uma prerrogativa da alma,
muitas vezes são atribuídas ao coração,
demonstra que na Bíblia a alma não existe e não
opera como uma essência distinta, imaterial, à parte do
corpo.
PARTE V: A
NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO
Até aqui, temos visto que o
Velho Testamento define a natureza humana como uma unidade, o homem,
que é uma alma (ser vivente) segundo um aspecto, carne (ser
físico) segundo outro aspecto, e coração (ser
racional) por outro aspecto ainda. Há mais um importante aspecto
a ser considerado, qual seja, o homem como espírito. O termo
“espírito” traduz o hebraico ruach e seu equivalente
neotestamentário pneuma. Estudamos esta última no
capítulo 3 onde examinamos o ponto de vista do Novo Testamento
sobre a natureza humana.
O estudo da presença do
Espírito de Deus nos seres humanos é importante porque os
dualistas freqüentemente identificam o Espírito de Deus
numa pessoa com a alma dada por Deus para cada indivíduo e a Ele
retornando quando da morte. Destarte, nossa preocupação
é estabelecer, primeiro, a natureza do Espírito de Deus
numa pessoa, e, em segundo lugar, se o espírito nos seres
humanos é um componente distinto e separado da natureza humana
ou um aspecto indivisível da mesma.
Um exame superficial dos dados
estatísticos do emprego do termo “espírito-ruach” no Velho Testamento
demonstra que há pelo menos duas coisas singulares a respeito
deste termo que ocorre num total de 389 vezes. Primeiro, não
menos do que 113 vezes ruach-espírito
denota o poder natural do vento. Destarte, é um termo associado
com a manifestação de poder. Em segundo lugar, 35 por
cento das vezes (136 vezes) ruach-espírito
refere-se a Deus. Somente 33 por cento das vezes (129 vezes) refere-se
aos homens, animais e falsos deuses. Isso é surpreendente em
face do fato de que “carne-bashar”
nunca é aplicado a Deus, e “alma-nephesh” somente se aplica a Deus
em 3 por cento dos casos (21 vezes).54
À base desses dados
estatísticos, Hans Walter Wolff corretamente conclui que “ruach [espírito]” deve a
partir do próprio início apropriadamente ser chamado um
termo teoantropológico”,55 isto é, um termo
com conotações divino-humanas. A Bíblia aplica ruach-espírito tanto a Deus
quanto ao homem. Para entender o conceito bíblico do
espírito do homem, é importante entender o significado
bíblico do Espírito de Deus. Iremos nos empenhar em fazer
isso examinando especialmente como o Espírito de Deus opera
dentro da natureza humana.
O
Sentido de “Espírito-ruach”.
O termo hebraico geralmente
traduzido por “espírito” é ruach, que literalmente significa
“ar em movimento, vento”. Assim, em Gênesis 1:2, o
Espírito-ruach de Deus
movia-Se sobre as águas e em Isaías 7:2, “como se agitam
as árvores do bosque”. Wolff assinala que ruach não
significa o ar estático mas o “ar em movimento”56 que
gera considerável poder. Não surpreende que o poder
formidável do vento [ruach]
é freqüentemente visto como uma manifestação
do poder de Deus. O vento oriental [ruach]
traz gafanhotos (Êxo. 10:13). Um vento poderoso [ruach] sobre sobre a Terra e faz
com que as águas do dilúvio baixem (Gên. 8:1).
O poder manifesto pelo vento
é associado na Escritura ao sopro de Deus, que é Seu
poder criativo e sustenedor. Encontramos esse uso pela primeira vez em
Gênesis 2:7: “Então formou o Senhor ao homem do pó
da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego [neshamah] de vida, e o homem passou
a ser alma vivente”.
Antes examinamos esse grande texto
para assegurar-nos da ligação entre “fôlego de
vida” e “alma vivente”. Agora buscamos entender mais plenamente o que o
“fôlego de vida” é que leva o homem a tornar-se uma alma
vivente. A palavra hebraica empregada para fôlego aqui não
é ruach-espírito
mas o termo raramente utilizado neshamah-fôlego.
O significado dos dois termos é semelhante, como indicado pelo
fato de que aparecem em paralelo em cinco passagens (Isa. 42:5;
Jó 27:4; 32:8; 33:4; 34:14, 15). Jó 33:4 declara: “O
Espírito [ruach] de
Deus me fez; e o sopro do Todo-poderoso me dá vida”. Uma vez
mais, “Se Deus pensasse apenas em Si mesmo, e para Si recolhesse o Seu
espírito [ruach] e o
Seu sopro [neshamah], toda a
carne juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó”
(Jó 34:14, 15).
Nestas passagens, neshamah e ruach são utilizadas como
sinônimos, contudo parece haver uma leve diferença entre
os dois termos. Neshamah denota
respiração física calma, pacífica, enquanto
ruach descreve uma forma mais ativa e dinâmica de
respiração. Ruach
parece também ser o agente que torna a respiração
possível. “Enquanto em mim estiver a minha vida [“fôlego-neshamah”,VKJ] , e o sopro [ruach] do Todo-poderoso nos meus
narizes. . .” (Jó 27:3). Aqui a respiração-neshamah está na pessoa,
enquanto o espírito-ruach
está no respirar através das narinas. “Assim diz Deus, o
Senhor . . . que dá fôlego de vida [neshamah] ao povo que nela
está, e o espírito [ruach]
aos que andam nela” (Isa. 42:5). Aqui espírito-ruach significa mais do que
respirar porque é dado somente “aos que andam nela”. Pareceria
como se a repiração-neshamah
seja uma das manifestações do Espírito-ruach de Deus. O último
termo tem significados e funções mais amplos. Uma das
funções do Espírito de Deus é conceder a
vida e sustê-la mediante o processo de respiração.
“O fôlego vital de Deus é dom de Deus; ele respira por
cortesia do Espírito de Deus”.57
É interessante observar que
a leitura marginal de Gênesis 7:22 na Versão Autorizada
(em inglês) verte “o fôlego de vida” como “o fôlego
do espírito de vida”. Essa tradução literal do
hebraico transmite a idéia de que o fôlego de vida [neshamah] deriva do Espírito
[ruach] que concede vida.
Comentando este texto, Basil Atkinson escreve: “neshamah [fôlego] parece ser
uma propriedade ou porção da ruach [Espírito] e
preocupar-se com o que hoje chamaríamos de vida física. Ruach, também um
princípio de vida, é muito mais amplo. Produz e
sustém a vida interior, bem como exterior, do homem, seu
intelecto, pensamentos abstratos, emoções e desejos, bem
como cobre a ação integral da neshamah sobre a vida
física”.58
O
Espírito Como Um Princípio de Vida. O uso paralelo
de neshamah-fôlego de vida e ruach-Espírito
nos textos citados demonstra que o “fôlego de vida” é o
Espírito de Deus que transmite vida, manifesto na
criação da vida humana e do universo como um todo. “Que
variedade, Senhor, nas Tuas obras . . . cheia está a Terra das
Tuas riquezas. Se ocultas o Teu rosto, eles se perturbam; se lhes corta
a respiração [ruach],
morrem, e voltam ao seu pó. Envias o Teu Espírito [ruach] e eles são criados, e
assim renovas a face da terra” (Sal. 104:24, 29, 30). “Fôlego” e
“Espírito” aqui traduzem ruach, indicando assim que o
“fôlego de vida” é igualado ao Espírito de Deus que
transmite vida e que cria e renova a face da terra”.
Há numerosos textos no
Velho Testamento em que o espírito-ruach refere-se ao princípio
de vida presente nos seres humanos. Em Isaías 38:16, encontramos
o rei Ezequias declarando: “Senhor, por estas disposições
Tuas vivem os homens, e inteiramente delas depende o meu
espírito [ruach]”. A
cláusula “depende o meu espírito” muito provavelmente
refere-se à recuperação da saúde de
Ezequias, uma vez que o texto prossegue dizendo: “portanto, restaura-me
a saúde e faze-me viver (Isa. 38:16). Aqui o espírito-ruach é claramente
identificado com vida. Não há qualquer sugestão de
que o espírito no homem é um componente independente e
imortal da natureza humana. Antes, é o princípio animador
de vida visível mediante a respiração.
Ídolos que não
têm qualquer vida são descritos como sem “fôlego-ruach”. “Todo ourives é
envergonhado pela imagem que ele esculpiu; pois as suas imagens
são mentira, e nelas não há fôlego [ruach]” (Jer. 10:4). “Eis que
está coberto de ouro e de prata, mas no seu interior não
há fôlego [ruach]
nenhum” (Hab. 2:19). Em ambos os textos, ruach é vertido como
“fôlego” porque o respirar é uma
manifestação do Espírito de Deus na natureza
humana. É evidente que os ídolos são
destituídos de vida porque não contam com ruach, o princípio que anima
a vida que capacita uma pessoa a respirar.
Ao descrever o destino do rei
Zedequias às mãos de Nabucodonosor, Jeremias emprega uma
interessante figura de linguagem: “O fôlego [ruach] de nossa vida, o ungido do
Senhor foi preso nos forjes deles” (Lam. 4:20). Aqui Zedequias é
imaginado como a própria vida-ruach
da nação que foi removida quando o rei foi levado
em cativeiro. Aqui temos um claro exemplo de ruach denotando o princípio
de vida.
Falando de Sansão,
Juízes 15:19 declara: “tendo Sansão bebido, recobrou
alento [ruach]” (Juí.
15:19). Esse despertar não é da morte, mas da
exautão. Encontramos exatamente o mesmo emprego em 1 Samuel
30:12 e Daniel 10:17. Em todos esses casos, o espírito-ruach denota a
renovação física da vida. Sendo um agente
transmissor de vida, o espírito-ruach
adequadamente pode representar também a renovação
física da vida. A ligação entre espírito-ruach e vida é evidente.
Em sua famosa visão do vale
dos ossos secos, Ezequiel propicia um exemplo muito vívido do
poder vivificador do Espírito de Deus-ruach: “Assim diz o Senhor Deus a
estes ossos: Eis que farei entrar o espírito [ruach] em vós, e vivereis. .
. . E sabereis que Eu sou o Senhor. . . . Vem dos quatro ventos,
ó espírito [ruach],
e assopra sobre eles, para que vivam. Então ele me disse:
Profetizei como ele me ordenara, e o espírito [ruach] entrou neles e viveram e se
puseram em pé” (Eze. 37:5, 6, 9, 10). Aqui o fôlego de
Deus é Seu Espírito vitalizador, como na
criação do homem. O Espírito transmissor de vida
é identificado com o fôlego de Deus porque sua
manifestação levou os corpos mortos a tomarem vida e
respirarem novamente. O respirar é uma
manifestação tangível da vida e assim propicia uma
adequada metáfora para o princípio animador de vida do
espírito.
O
Espírito Como Palavra de Deus. No Salmo 33:6 encontramos
um interessante paralelismo entre o fôlego de Deus e Sua Palavra:
“Os céus por Sua palavra se fizeram, e pelo sopro [ruach] de Sua boca o
exército deles”. Aqui o fôlego-ruach de Deus age como
sinônimo para a Palavra de Deus porque ambos procedem de Sua
boca. O paralelismo sugere que o fôlego de Deus é mais do
que ar que se move. Esse é o poder de vida manifesto mediante a
palavra falada de Deus.
Outro exemplo em que a palavra de
Deus está associada com ruach-espírito
se acha no Salmo 147:18: “Manda a Sua palavra, e o derrete; faz soprar
o vento [ruach], e as
águas correm”. Aqui a palavra de Deus está associada com ruach-fôlego ou vento,
presumivelmente porque a fala é produzida pela
respiração e procede da boca. Deus é descrito
analogicamente de acordo com o processo humano de falar mediante a
respiração.
Nunca devemos nos esquecer que os
hebreus descreviam coisas como as viam, concretamente, não
abstratamente. Viam que a fala era causada pelo respirar, assim era
natural associarem o hálito de Deus com Sua palavra. Destarte, o
fôlego de Deus devia ser entendido não como o ar que se
move, mas como o poder transmissor de vida manifesto mediante Sua
palavra falada. Quando Deus fala, as coisas acontecem, porque Sua
palavra não é um discurso vazio, mas um poder transmissor
de vida.
O
Espírito Como Renovação Moral. A
renovação ou recriação empreendida pelo
Espírito de Deus não é somente física, mas
também moral. Davi orou: “Cria em Mim, ó Deus, um
coração puro, e renova dentro em mim um espírito [ruach] inabalável.
Não me repulses da Tua presença, nem me retires o Teu
Santo Espírito” (Sal. 51:10, 11). O “espírito [ruach] inabalável” é
a correta disposição de uma pessoa para com Deus que
é tornado possível pelo “Espírito [ruach] Santo de Deus”. Destarte, o
espírito-ruach é
tanto o Espírito de Deus quanto o espírito do homem. Deus
concede o Espírito para criar e suster a vida. O homem recebe o
Espírito para viver segundo a vontade de Deus. Friedrich
Baumgarten escreve: “O Espírito de Deus é um poder
criativo e transformador, e seu propósito é criar uma
esfera de religião e moralidade”.59
Em Ezequiel encontramos o
espírito-ruach
empregado três vezes para o novo princípio regenerado de
vida que Deus coloca dentro do crente quando ele se converte (Eze.
11:19; 18:31; 36:26). “Dar-vos-ei coração novo, e porei
dentro em vós espírito [ruach]
novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos
darei coração de carne”. (Eze. 36:26). Aqui o novo
espírito-ruach”
associa-se a um “novo coração”, porque descobrimos que o
coração é a mente, ou o centro de
raciocínio do indivíduo. O novo espírito-ruach é uma atitude de
voluntária obediência aos mandamentos de Deus que procede
de uma renovação mental (Rom. 12:2). Esse significado
é esclarecido pelo verso que vem logo a seguir: “Porei dentro em
vós o meu Espírito [ruach]
e farei que andeis nos Meus estatutos, guardeis os Meus juízos e
os observeis” (Eze. 36:27). É mediante o poder capacitador do
Espírito de Deus que nossa mente é renovada de modo a que
possamos viver de acordo com os princípios morais que Deus
revelou para o nosso bem-estar.
O
Espírito Como Poder Capacitador. O Espírito de
Deus é manifestado somente na criação e
sustentação da vida, mas também em equipar os
indivíduos para tarefas específicas. Quando Deus
comissionou Gideão para livrar os israelitas da tirania de
Midiã, “Então o Espírito [ruach] do Senhor revestiu a
Gideão” (Juí. 6:34) e capacitou-o a conduzir os
israelitas à vitória. Foi o Espírito do Senhor que
equipou Gideão para a tarefa, porque ele questionava suas
próprias qualificações: “Ai, Senhor meu, com que
livrarei a Israel? Eis que a minha família é a mais pobre
em Manassés, e eu o menor da casa de meu pai” (Juí. 6:15).
A mesma coisa ocorreu com
Jefté: “Então o Espírito [ruach] do Senhor veio sobre
Jefté; e atravessando este por Gileade e de Mispa de Gileade
contra os filhos de Amom” (Juí. 11: 29, 32). Em tais casos, o
Espírito de Deus capacitou certos dirigentes israelitas a
realizar atos sobre-humanos em momentos críticos.
O Espírito de Deus
também foi concedido a líderes nacionais para levarem a
cabo o plano de Deus para Israel. Quando o “Espírito do Senhor”
veio sobre Saul, ele transformou-se “em outro homem” (1 Sam. 10:6).
Semelhantemente, quando Samuel ungiu a Davi para suceder a Saul como
rei, “daquele dia em diante o Espírito [ruach] do Senhor Se apossou de
Davi” (1 Sam. 16:13). Observe-se que Davi foi ungido rei tendo-se
“retirado de Saul o Espírito [ruach]
do Senhor” (1 Sam. 16:14). O espírito que deixou Saul
dificilmente poderia ser sua alma que partiu para Deus, uma vez que ele
continuou vivo. A retirada do Espírito desqualificou Saul como
rei de Israel, enquanto a concessão do Espírito a Davi
qualificou-o para reinar sobre o povo.
É evidente que o
Espírito que Deus concedeu a Gideão e Jefté para
julgarem e a Davi para reinar não é o mesmo “fôlego
de vida” que está presente em todo ser humano. Este
último é o princípio de vida que anima todo ser
humano, enquanto o primeiro é o Espírito de Deus
concedido a indivíduos escolhidos para equipá-los para
uma missão especial. No caso de Bezazel, por exemplo, o
Espírito de Deus equipou-o com talentos especiais para a
edificação do santuário. “E o enchi do
Espírito de Deus, de habilidade, de inteligência, e de
conhecimento, em todo artifício, para elaborar desenhos e
trabalhar em ouro, em prata, em bronze, e para lapidação
de pedras de engaste, para entalho de madeira, para toda sorte de
lavores” (Êxo. 31:3-5).
O Espírito de Deus
comissionava profetas para comunicarem mensagens especiais para o povo.
Ezequiel declara: “Então entrou em mim o Espírito, quando
falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o que me falava”.
Repetidamente, os profetas dizem que o Espírito do Senhor veio
sobre eles. Zacarias fala da “lei, nem as palavras que o Senhor dos
Exércitos enviara pelo Seu Espírito [ruach] mediante os profetas que nos
precederam” (Zac. 7:12).
A concessão do
Espírito de Deus é vista como uma comissão oficial
divina. Em Isaías 61, o Servo do Senhor, o Messias, é
ungido pelo Espírito para a Sua missão: “O
Espírito [ruach] do
Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para
pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados
de coração, a proclamar libertação aos
cativos, e a pôr em liberdade os algemados” (Isa. 61:1). Joel
profetizou do tempo messiânico quando o Espírito de Deus
seria derramado sobre todo crente: “E acontecerá que derramarei
o Meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas
profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens
terão visões”. Nesses casos, o Espírito de Deus
opera não como o princípio animador da vida
física, mas como o Agente que equipa os crentes para o
serviço.
O
Espírito Como a Disposição de Um Indivíduo.
A idéia de poder manifesto pelo espírito-ruach é levado a efeito no
que chamaríamos a disposição ou impulso dominante
de um indivíduo. Uma pessoa viva tem impulsos que o dominam, ou,
pelo menos, tentam fazê-lo, e que ele deve vencer. Isso é
freqüentemente expresso no Velho Testamento pelo termo
espírito-ruach, e
caracteriza o espírito humano muitas vezes antagônico a
Deus. Oséias queixa-se de que um “espírito [ruach] de
prostituição” iludiu os sacerdotes (Osé.
4:12). Ezequiel denunciou os “profetas loucos, que seguem o seu
próprio espírito sem nada ter visto” (Eze. 13:3). O Salmo
78:8 fala da geração do deserto “cujo espírito [ruach] não foi fiel a Deus”
. Provérbios 25:28 compara um homem que não “tem
domínio próprio” [“não governa seu próprio
espírito-ruach”-VKJ] a
uma cidade sem muros.
Eclesiastes diz que “melhor é o paciente [“em espírito-ruach”-VKJ] do que o arrogante
[“orgulhoso em espírito-ruach”-VKJ]”.
Em todos esses exemplos, o espírito denota uma atitude de
obediência ou desobediência a Deus. Assim, não
é para ser confundido com a função transmissora de
vida do Espírito de Deus.
Às vezes o espírito-ruach é a sede da
dor, geralmente referido no hebraico como “amargura do
espírito”. É-nos dito que o povo de Israel não
atendeu “a Moisés por causa da ânsia de espírito [ruach] e da dura escravidão”
(Êxo. 6:9). Ana disse ao sacerdote, “Sou mulher atribulada de
espírito [ruach];
não bebi nem vinho nem bebida forte; porém venho
derramando a minha alma perante o Senhor” (1 Sam. 1:15). Aqui o
espírito abatido é comparado com o esvaziamento da alma
perante Deus.
O espírito e a alma
são mencionados juntos porque ambos representam a vitalidade da
vida afetada pelo sofrimento. Em Provérbios 15:13, lemos que
“com a tristeza do coração o espírito [ruach] se abate”. Aqui descobrimos
que o coração é a sede do sofrimento, mas o
sofrimento despedaça o espírito ou a vida íntima
de uma pessoa. A interação entre espírito e alma,
ou coração e espírito, faz-nos lembrar o
entendimento holístico bíblico da natureza humana, seus
vários aspectos sendo todos partes de um ser humano
indivisível.
Há casos em que o
espírito-ruach é
a sede das emoções. Provérbios 16:32 declara:
“Melhor é o longânimo do que o herói de guerra, e o
que domina o seu espírito [ruach]
do que o que toma uma cidade”. Governar o espírito de
alguém significa controlar o temperamento ou ira. Em
vários exemplos, ruach é traduzido como “ira”
(Juí. 8:3; Eze. 3:14; Prov. 14:29; 16:32; Ecl. 7:9; 10:4).
Noutros textos, ruach denota coragem: “Ouvindo isto, desmaiou-nos o
coração, e em ninguém mais há ânimo [ruach] algum” (Jos. 2:11).
Há também passagens
em que espírito-ruach
é empregada com o sentido de tristeza: “Porque o Senhor te
chamou como a mulher desamparada e de espírito [ruach] abatido” (Isa. 54:6). “Perto
está o Senhor dos que têm o coração
quebrantado, e salva os de espírito [ruach] oprimido” (Sal.
34:18).60 O espírito-ruach também pode denotar
contrição e humildade. Destarte, temos a bela passagem em
Isaías 57:15: “Habito no alto e santo lugar, mas habito
também com o contrito e abatido de espírito [ruach], para vivificar o
espírito [ruach] dos
abatidos, e vivificar o coração dos contritos”. Novamente
em Isaías 66:2: “O homem para quem olharei é este: o
aflito e abatido de espírito [ruach],
e que treme da Minha palavra”.
Este breve levantamento dos
vários empregos de espírito-ruach no Velho Testamento
demonstrou que o espírito é um princípio vital que
deriva de Deus e mantém a vida humana. Numa maneira figurada, o
espírito-ruach é
empregado para referir-se à renovação moral
interior, boas ou más disposições, impulsos
dominantes, dor, coragem, tristeza, contrição, e
humildade. Nenhum dos empregos que estudamos sugere que o
espírito retém consciência ou personalidade quando
deixa uma pessoa por ocasião da morte. A função do
espírito como transmissor de vida e princípio sustenedor
cessa quando a pessoa morre.
A
Partida do Espírito na Morte. Onze passagens do Velho
Testamento fala da partida ou remoção do espírito
por ocasião da morte.61 Destas, quatro merecem
atenção especial porque são freqüentemente
utilizadas para apoiar a crença de que por ocasião
da morte o espírito vai para Deus, levando consigo a
personalidade e a consciência do indivíduo quando falece.
Ao predizer a morte do Senhor na
cruz, o Salmo 31:5 declara: “Nas Tuas mãos entrego o meu
espírito [ruach]”. O
“espírito” que Cristo entregou nas mãos de Seu Pai nada
mais era do que Sua vida humana que estava deixando nas mãos de
Seu Pai para aguardar Sua ressurreição. Ao Dele partir o
princípio animador de vida, o Senhor morreu e mergulhou em
inconsciência.
Falando de criaturas marinhas, o
salmista declara: “Se lhes cortas a respiração [ruach], morrem, e voltam ao seu
pó” (Sal. 104:29). Ninguém alegará que o
espírito-ruach dos
peixes quando morrem leva consigo consciência e personalidade.
Temos razão para crer que o mesmo seja verdade para os seres
humanos, porque a mesma expressão é empregada para ambos.
De fato, no verso seguinte a criação dos animais é
descrita por meio do Espírito divino transmissor de vida, como
é a criação do homem: “Envias o Teu
Espírito, eles são criados, e assim renovas a face da
Terra” (Sal. 104:30).
Como a criação da
vida é metaforicamente representada por enviar o Espírito
de Deus, assim a terminação da vida, morte, é
descrita como a retirada ou remoção do fôlego de
Deus. A última é claramente expressa em Jó 34:14,
15: “Se Deus . . . para Si recolhesse o Seu espírito [ruach] e o Seu sopro [neshamah], toda carne juntamente
expiraria, e o homem voltaria para o pó”. Novamente, o mesmo
pensamento é expresso na bem conhecida passagem de Eclesiastes
12:7: “E o pó volte à terra, como o era, e o
espírito volta a Deus, que o deu”.
Estes últimos dois textos
são muito importantes, porque são comumente citados para
apoiar a crença de que o “espírito-ruach” que retorna para Deus
é a alma que deixa o corpo por ocasião da morte
transportando consciência e personalidade. Esta
interpretação carece de respaldo bíblico por
quatro principais razões. Primeiro, em parte alguma na
Bíblia é o fôlego de Deus ou Espírito
identificado com a alma humana. A existência da alma depende da
presença do fôlego [neshamah]
ou espírito [ruach]
transmissor de vida. E quando o espírito transmissor de vida
é retirado, uma pessoa cessa de ser uma alma vivente e torna-se
uma alma morta. Assim, o salmista diz: “Sai-lhes o espírito [ruach] e eles tornam ao pó;
nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios” (Sal. 146:4).
Em segundo lugar, em parte alguma
a Bíblia sugere que o espírito transmissor de vida que
retorna para Deus continua a existir como uma alma imaterial do corpo
que morreu. Pelo contrário, a Bíblia ensina que quando
Deus retira o seu fôlego de vida ou espírito de vida, o
resultado não é a sobrevivência da alma, mas a
morte da pessoa total. “perecem todos os seus desígnios”
[“pensamentos”-VKJ] (Sal. 146:4), porque não há mais
consciência. A morte aplica-se tanto ao corpo quanto à
alma, porque, como vimos, ambos são inseparáveis. O corpo
é a forma exterior da alma e a alma é a forma interior do
corpo.
Em terceiro lugar, o
espírito que retorna para Deus refere-se a todos os homens
(“toda carne”), não somente o dos bons. Os que alegam que o
espírito de todas as pessoas, salvas e perdidas, vão para
Deus para julgamento ignoram que as Escrituras ensinam que o julgamento
tem lugar, não quando da morte, mas por ocasião da vinda
do Senhor no fim do mundo.
Em quarto lugar, a Bíblia
nunca sugere que o fôlego de vida torna o seu possuidor imortal
ou isento de morte. Em nenhuma das 389 ocorrências de
ruach-espírito no Velho Testamento há qualquer
sugestão de que ruach-espírito seja uma entidade
inteligente da natureza humana capaz de existência à parte
de um corpo físico. Pelo contrário, a Bíblia fala
da morte daqueles que possuem o fôlego de vida: “Porque eis que
estou para derramar águas em dilúvio sobre a Terra para
consumir toda carne em que há fôlego de vida [ruach] debaixo dos céus:
tudo o que há na Terra perecerá [gava-deixa de respirar]”
(Gên. 6:17). “Pereceu toda carne que se movia sobre a Terra. . .
. Tudo o que tinha fôlego de vida [ruach] em suas narinas, tudo o que
havia em terra seca, morreu [gava-deixou
de respirar]” (Gên. 7:21, 22).
É evidente de textos como
estes que possuir o fôlego ou o espírito de vida
não significa ter uma alma imortal. O fôlego de vida
é simplesmente o dom de vida dado aos seres humanos e animais
pela duração de sua existência terrena. O
espírito ou fôlego de vida que retorna para Deus por
ocasião da morte é simplesmente o princípio de
vida concedido por Deus tanto para os seres humanos quanto para os
animais. Este ponto é claramente exposto em Eclesiastes 3:19:
“Porque o que sucede aos filhos dos homens, sucede aos animais; o mesmo
lhes sucede; como morre um, assim morre o outro, todos têm o
mesmo fôlego de vida [ruach],
e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais”. Os que alegam que os
animais não possuem o espírito [ruach] de vida, mas somente o
fôlego [neshamah] de
vida ignoram o que tanto Eclesiastes 3:21 quanto Gênesis 7:15, 22
claramente expressam que os animais possuem o mesmo
espírito-ruach de vida concedido aos seres humanos.
Não há
indicação na Bíblia de que o espírito de
vida dado ao homem quando da criação fosse uma entidade
consciente antes de ter sido dado. Isso nos dá razão para
crer que o espírito de vida não tem personalidade
consciente quando retorna para Deus. O espírito que retorna para
Deus é simplesmente o princípio animador de vida
concedido por Deus para tanto homens quanto animais pela
duração de sua existência terrestre.
Conclusão.
Chegamos ao final da nossa investigação de quatro
destacados termos empregados no Velho Testamento para descrever a
natureza humana, quais sejam, alma, corpo, coração e
espírito. Constatamos que esses termos não representam
entidades diferentes, cada uma com seu próprio conjunto de
funções, mas diferentes funções que
são inter-relacionadas e integradas dentro do mesmo organismo. O
Velho Testamento considera a natureza humana como uma unidade,
não uma dicotomia. Não há contraste entre o corpo
e a alma, tal como esses termos possam sugerir-nos.
A alma não é uma parte imaterial, imortal da natureza
humana que se contrasta com o corpo, mas designa o princípio de
vitalidade ou vida na natureza humana. A última é
composta de uma forma que consiste do pó e um princípio
vital, chamado ocasionalmente fôlego (neshamah) e geralmente
espírito (ruach),
soprado nele por Deus. O corpo e o divino sopro juntamente constituem a
alma vital, ativa-nephesh. A
sede da alma é o sangue, porque é visto como a
manifestação tangível da vitalidade da vida.
Desde o princípio de vida,
o termo “alma-nephesh”
é estendido para incluir o sentimento, paixões, vontade,
e personalidade de um indivíduo. Pode então ser empregado
como sinônimo para o próprio homem. As pessoas são
contadas como almas (Gên. 12:5; 46:27). A morte afeta a
alma-nephesh (Núm. 23:10) bem como o corpo.
O espírito-ruach, que literalmente significa
“ar em movimento, vento”, é freqüentemente empregado para
Deus. O espírito-ruach
de Deus é o Seu fôlego, ou seja, o Seu poder manifestado
em criar e suster a vida (Sal. 33:6; 104:29, 30). A
respiração humana-ruach
deriva do fôlego-ruach de Deus (Isa. 42:5; Jó 27:3). Num
sentido figurado, o espírito-ruach
é expandido para referir-se à renovação
moral interior, boas e más disposições, vida
emocional e volitiva, assim sobrepondo-se um tanto com a alma-nephesh. A diferença entre
alma-nephesh e espírito-ruach é que este
último designa principalmente uma pessoa vivente em
relação com outros seres humanos, enquanto o
último refere-se a uma pessoa em relação com
Deus. Contudo, temos visto que nem a alma nem o
espírito se consideram parte da natureza humana capaz de
sobreviver à morte do corpo.
As referências do Velho
Testamento à carne ou ao corpo nunca sugerem que as
funções corporais sejam puramente biológicas e
independentes das funções psicológicas da alma.
Não há distinção no Velho Testamento entre
órgãos físicos e espirituais, porque todo o
conjunto de funções humanas mais elevadas tais como
sentimento, pensamento, conhecimento, amor, observância dos
mandamentos de Deus, louvor e oração são
igualmente atribuídos aos órgãos “espirituais” da
alma (ou espírito) e ao órgão “físico” do
coração e, ocasionalmente, dos rins e intestinos.
Os órgãos corporais
realizam funções psíquicas. Destarte, o
coração pensa, os rins se regozijam, o fígado
lamenta, e os intestinos sentem simpatia. Isso é possível
porque no ponto de vista holístico da natureza humana uma parte
da pessoa pode às vezes representar o organismo integral.
As referências à
partida (Gên. 35:18) e retorno (1 Reis 17:21, 22) da alma
não podem ser legitimamente empregadas para apoiar o ponto de
vista de que por ocasião da morte a alma deixa o corpo e retorna
a ele por ocasião da ressurreição. Temos visto que
a partida da alma é uma metáfora para a morte, indicando
que a pessoa cessou de respirar. Semelhantemente, o retorno da alma
é uma metáfora para a restauração da vida,
indicando que a pessoa começou a respirar novamente. O que
é verdadeiro com relação à alma é
também verdadeiro quanto ao fôlego de vida ou
espírito que retorna para Deus quando da morte. O que retorna a
Deus não é uma alma imortal, mas simplesmente o
princípio animador da vida concedido por Deus tanto aos seres
humanos quanto aos animais pela duração de sua
existência terrena.62
Ralph Walter Doermann
essencialmente chega à mesma conclusão em sua
dissertação doutoral, “Sheol
no Velho Testamento”, apresentado em 1961 na Universidade Duke. Ele
escreveu: “É evidente do ponto de vista hebraico da unidade
psicossomática do homem que há pouco espaço para
uma crença na ‘imortalidade da alma’. Ou a pessoa inteira viveu
ou a pessoa inteira desce à morte, a forma mais fraca de vida.
Não houve existência independente para o ruach [espírito] à
parte do corpo. Com a morte do corpo, o ruach [espírito] impessoal
‘volta para Deus que o deu’ (Ecl. 12:7) e o nephesh foi destruído,
conquanto estivesse presente num sentido muito débil nos ossos e
sangue. Quando esses foram sepultados ou cobertos, a pouca vitalidade
que permaneceu foi anulada”.63
Sumariando nossa conclusão,
podemos dizer que o ponto de vista holístico do Velho Testamento
da natureza humana elimina a distinção entre corpo e alma
como dois campos completamente diferentes da realidade. Ademais, remove
a base para a crença na sobrevivência da alma por
ocasião da morte do corpo. Nosso próximo passo
será estabelecer se o Novo Testamento apóia ou modifica a
perspectiva holística do Velho Testamento a respeito da natureza
humana. Esta questão é abordada no capítulo
seguinte.
Notas do
Capítulo 2
1. P. E.
Hughes, Hope for a Despairing World (Grand
Rapids, 1997), p. 50.
2. Para uma
pesquisa das várias
interpretações da imagem de Deus no homem, ver H. D.
McDonald, The Christian View of Man
(Westchester, Illinois, 1981), pp. 33-41.
3. Por exemplo,
C. Ryder Smith afirma que
ambas as palavras hebraicas e seus equivalentes no grego sugerem uma
semelhança física entre Deus e o homem (The Bible Doctrine of Man [Londres,
1951], pp. 29-30). Semelhantemente, H. Gunkel apela ao evidente modo
antropomórfico em que Deus é descrito no Velho Testamento
(The Legend of Genesis [Chicago,
1901], pp. 8-10).
4. R.
Laird-Harris, Man--God’s Eternal
Creation: A Study of
Old Testament Culture (Chicago, 1971), p. 24.
5. John Calvin, Institutes
of the Christian Religion
I, XV, 3 (Londres, 1949), Vol. 1, pp. 162, 165.
6. Este ponto de
vista é expresso por
Paul Jewett, que segue a Karl Barth em considerar a imagem de Deus no
homem como precisamente o de macho e fêmea. Declara ele
“Gênesis 1:27b (‘macho e fêmea os criou’) é uma
exposição de 1:27a (‘à imagem de Deus o criou’)” (Man: Male and Female [Grand Rapids,
1975], p. 33).
7. Webster’s
New Collegiate Dictionary, 1974 ed., s.v. “Soul.”
8. Claude
Tresmontant, A Study in Hebrew
Thought (Nova
York, 1960), p. 94. Este é um livro altamente recomendado sobre
a diferença entre o pensamento grego e hebraico.
9. Aubrey
Johnson, The Vitality of the
Individual in the
Thought of Ancient Israel (Cardiff, Wales, 1964), p. 19.
10. Johannes Pedersen, Israel:
Its Life and Culture (Londres,
1926), Vol. l, p. 99.
11. Ibid.,
pp. 99-100.
12. Hans Walter Wolff, Anthropology
of the Old Testament (Philadelphia,
1974), p. 10.
13. Dom Wulstan Mork, The
Biblical Meaning of Man (Milwaukee,
Wisconsin, 1967), p. 34.
14. Johannes Pedersen
(nota 10), p. 171.
15. H. Wheeler Robinson, The
Christian Doctrine of Man (Edinburg,
1952), p. 27.
16. Dom Wulstan Mork
(nota 13), p. 34.
17. Norman Snaith,
“Justice and Immortality,” Scottish
Journal of Theology 17,
3, (Setembro 1964), pp. 312-3 13.
18. Basil F. C. Atkinson,
Life and Immortality (Londres,
n.
d.), pp.1-2.
19. Ibid.,
p. 2.
20. Ibid.
21. Tory Hoff, “nephesh
and the Fulfillment It Receives as psychê,”
in Toward a Biblical View of Man:
Some Readings, eds. Arnold H. De Graaff e James H. Olthuis
(Toronto, 1978), p. 103.
22. Basil F. C. Atkinson
(nota 18), p. 17.
23. A
tabulação é de Basil F. C.
Atkinson (nota 18), p. 3.
24. Hans Walter Wolff
(nota 12), p. 10.
25. Tory Hoff (nota 21),
p. 98.
26. Ibid.
27. Ibid.
28. Hans Walter Wolff
(nota 12), p. 25.
29. Dom Wulstan Mork
(nota 13), p. 40.
30. Ibid.
31. W. David Stacey, The
Pauline View of Man (Londres,
1956), p. 87.
32. Dom Wulstan Mork
(nota 13), p. 41.
33. Johannes Pedersen
(nota 10), p. 179.
34. Ibid.,
p. 180.
35. Edmund Jacob, “nephesh,”
Theological Dictionary of the New
Testament, ed. Gerhard Friedrich (Grand Rapids, 1974), Vol. 9,
p. 621.
36. Johannes Pedersen
(nota 10), p. 171.
37. Robert A. Morey, Death and
the Afterlife (Minneapolis,
1984), p. 49.
38. Hans Walter Wolff
(nota 12), p. 20.
39. Edmund Jacob (nota
35), p. 619.
40. Tory Hoff (nota 21),
p. 101.
41. Edmund Jacob (nota
35), p. 618.
42. Basil F. C. Atkinson
(nota 18), p. 10.
43. As regras
monásticas claramente revelam
quão importante foi mortificar a carne propiciando ao corpo
somente o que era indispensável para a sobrevivência , a
fim de cultivar o bem-estar da alma. A regra beneditina, por exemplo,
permite o uso de banhos aos doentes, mas restringe-os aos
sãos: “O uso de banhos será oferecido ao enfermo
tão freqüentemente quanto necessário: aos
sãos, e especialmente aos jovens, muito raramente” (Henry
Bettenson, Documents of the
Christian Church [Oxford, 1967], p. 121).
44. D. R. G. Owen, Body
and Soul (Philadelphia,
1956), p. 167.
45. Ibid.,
p. 169.
46. Hans Walter Wolff
(nota 12), pp. 26-31.
47. Johannes Pedersen
(nota 10), p. 178.
48. A
tabulação é de Hans Walter
Wolff (nota 24), p. 40.
49. Walther Eichrodt, Theology
of the Old Testament
(Philadelphia, 1967), Vol. 2, p. 143.
50. R. C. Dentan,
“Heart,” The Interpreter’s
Dictionary of the Bible
(Nashville, 1962), Vol. 2, p. 549.
51. Hans Walter Wolff
(nota 24), p. 66.
52. A
tabulação é de Hans Walter
Wolff (nota 24), p. 40.
53. Johannes Pedersen
(nota 10), p. 104.
54. A
tabulação é de Hans Walter
Wolff (nota 24), p. 32.
55. Ibid.
56. Ibid.
57. Dom Wulstan Mork
(nota 13), p. 73.
58. Basil F. C. Atkinson
(nota 18), p. 18.
59. Friedrich Baumgartel,
“Spirit of God,” Bible Key Words
(New York, 1961),
p. 1.
60. Ver também
Eze. 2l:12; Êxo. 6:9;
Isa. 61:3; 65:14; Dan. 7:15.
61. As referências
veterotestamentárias
à partida ou remoção do espírito por
ocasião da morte são: Sal. 31:5; 76:12; 104:29-30; l46:4;
Jó 34:14-l5; Ecl. 3:l9-21; 8:8; 12:7.
62. As referências
veterotestamentárias da partida
ou remoção do espírito na morte são: Sal.
31:5; 76:12; 104:29, 30; Jó 34:14, 15; Ecl. 3:19-21; 8:8; 12:7.
63. Ralph Walter
Doermann, “'Sheol' in the Old
Testament”
(dissertação Ph. D. , Duke University, 1961), p. 205.