Livro
: Imortalidade ou Ressurreição?

Autor: Dr. Samuele Bacchiocchi


CAPÍTULO III

A VISÃO DA NATUREZA DO HOMEM NO NOVO TESTAMENTO


       Em nossas Bíblias, a primeira página do Novo Testamente segue-se imediatamente à última página do Velho Testamento. Isso pode sugerir a leitores desinformados que não há um intervalo de tempo entre os dois testamentos. Na realidade, cerca de quatro séculos os separam. Durante esse período inter-testamentário, o povo judeu esteve exposto, tanto em seu lar, na Palestina, quanto na diáspora (dispersão), à cultura e filosofias helenísticas (gregas) de grande influência. O impacto do helenismo sobre o judaísmo é evidente em muitas áreas, inclusive na adoção do dualismo grego por algumas obras literárias judaicas produzidas nessa época.
       A literatura judaica produzida durante o período inter-testamentário é geralmente conhecido como livros apócrifos ou pseudepígrafos.1  A maioria dos cristãos não considera esses livros não-canônicos como divinamente inspirados e como tendo autoridade como livros da Bíblia. Isso não diminui o seu valor histórico, uma vez que eles são uma importante fonte de informação sobre ocorrências históricas e ideológicas da época.
       No que diz respeito à natureza e destino humanos, duas principais escolas de pensamento judaico mantiveram-se leais ao ponto de vista holístico da natureza humana do Velho Testamento e propiciam um destacado pano de fundo para a compreensão do Novo Testamento. O judaísmo palestino via a morte como um sono inconsciente da pessoa inteira e destacava a necessidade da ressurreição final do corpo. A importância desse ponto de vista para o estudo do Novo Testamento pode ser ilustrado pelo livro apócrifo Apocalipse de Baruque (conhecido como 2 Baruque), que foi escrito por um judeu palestino na última metade do primeiro século da era cristã. O autor ensina que os mortos “dormem na terra” e quando o Messias retornar “todos os que adormeceram na esperança Dele ressuscitarão novamente”.2 Todos os justos serão reunidos num instante e os ímpios lamentarão, pois o tempo de seu tormento é chegado.3 Tal ponto de vista é impressionantemente semelhante ao ensino neotestamentário da ressurreição do corpo que é parte do conjunto de idéias que pareciam “loucura” para os gregos (1 Cor. 1:23).
       A segunda escola de pensamento é o judaísmo helenístico, que era grandemente influenciado pelo dualismo grego. O judaísmo helenístico floresceu especialmente em Alexandria, o lar de Filo, o bem conhecido filósofo judeu que tentou empreender uma síntese das idéias hebraicas e gregas. Nos escritos dos judeus helenistas encontramos claras referências à sobrevivência e imortalidade da alma. A existência desincorporada parece ser o destino eterno dos salvos. Por exemplo, o Livro dos Jubileus, apócrifo (cerca de 135 A.C.) ensina que “os ossos” jazem na sepultura enquanto os “espíritos” vivem independentemente: “E seus ossos repousarão na terra, e os espíritos deles terão muito gozo, e eles saberão que é o Senhor que executa julgamento, e revela misericórdia a . . . todos quantos O amam” (23:31).4
       Numa linha semelhante de pensamento, A Sabedoria de Salomão, escrita por um judeu helenista entre 50 e 30 A.C., declara que “as almas dos justos estão nas mãos de Deus, e nenhum tormento jamais os tocará . . . eles estão em paz . . . sua esperança é plena imortalidade” (3:1, 3, 4).5 A mesma visão é encontrada em 4 Macabeus, um tratado filosófico escrito por um judeu helenista pouco antes da era cristã. Os mortos justos ascendem imediatamente para a ventura eterna,6 enquanto os ímpios descem ao tormento eterno, variando em intensidade.7
       Em suma, durante o período inter-testamentário, como adequadamente expresso por Wheeler Robinson: “A interpretação dualística da relação do corpo e alma (ou espírito) é encontrado na linha helenista do judaísmo (Sab. 9:15); mas é alheio à linha de pensamento palestiniana, que liga o pensamento do Velho Testamento com muito do Novo”.8
       Ao lidarmos com o estudo da visão neotestamentária da natureza humana, não podemos ignorar a possível influência do judaísmo helenista sobre os autores dos livros do Novo Testamento. Afinal de contas, com a possível exceção de Mateus, todos os livros do Novo Testamento foram escritos em grego e empregam quatro grandes palavras gregas antropológicas: psychê-alma, pneuma-espírito, soma-corpo, e sarx-carne. Estas palavras eram comumente empregadas nos tempos do Novo Testamento com um sentido grego dualístico. A alma e espírito denotam a parte imaterial e imortal da natureza humana, enquanto o corpo e a carne descreviam a parte material e mortal.
       A questão então é: Em que extensão é o sentido dualístico dessas importantes palavras gregas refletido nos escritos do Novo Testamento? Surpreendementemente, como veremos neste capítulo, o sentido e uso dualístico desses termos está ausente no Novo Testamento. Mesmo aquelas passagens que parecem ser dualísticas em seu contraste entre carne e espírito, num exame mais detido revelam um entendimento holístico da natureza humana. Carne e espírito não se configuram como duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas dois diferentes tipos de estilo de vida: centralizado no eu versus centralizado em Deus.
       A razão para a ausência de influência dualística no Novo Testamento é que seus autores utilizaram importantes palavras gregas da natureza humana em harmonia com seus equivalentes originais no Velho Testamento, onde as idéias se originaram, e não consoante os sentidos prevalecentes na sociedade helenista.
       Sempre devemos ter em mente que “o elo entre o Velho Testamento hebraico e o Novo Testamento Grego é a grande versão Septuaginta (grega) do Velho Testamento realizada em Alexandria no terceiro século A.C. A tradução foi feita por judeus, que obviamente entendiam o sentido das palavras hebraicas e tencionavam fazer com que os termos gregos que utilizavam lhes correspondessem. Destarte, a Septuaginta segue o hebraico, e o Novo Testamento segue a Septuaginta. A versão Septuaginta não foi inspirada, mas na providência divina ela propiciou este valioso elo lingüístico entre o Velho e o Novo Testamentos”.9 A assimilação do dualismo grego na tradição cristã ocorreu após o Novo Testamento ter sido escrito. J. Robinson oferece alguns excelentes exemplos de como Paulo usou palavras gregas segundo o significado dos termos hebraicos correspondentes, e não segundo o uso grego prevalecente. Por exemplo, a frase de Paulo “a mente carnal” (Col. 2:18), não fazia sentido à mentalidade grega, porque a mente (nous) sempre era associada à alma (psychê) e nunca à carne.
         Semelhantemente, as referências paulinas ao corpo espiritual (1 Cor. 15:44, 46) e à contaminação da carne e espírito (2 Cor. 7:1) “teriam parecido um absurdo para os gregos”10 porque segundo eles, o corpo não era espiritual e o espírito não podia ser contaminado. Indicações desse tipo demonstram que o ponto de vista neotestamentário da natureza humana reflete o pensamento hebraico (Velho Testamento) e não o grego.
      
       Objetivos do Capítulo
. Este capítulo busca entender a perspectiva da natureza humana no Novo Testamento pelo exame de quatro destacados termos antropológicos, quais sejam, alma, espírito, corpo, e coração. Estes são os mesmos quatro termos que examinamos no capítulo anterior em nosso estudo da visão da natureza humana do Velho Testamento. Os vários significados e empregos desses termos são estudados para determinar se eles seguem os significados e utilizações dos termos hebraicos correspondentes no Velho Testamento.
       Nosso estudo revela prevalece uma continuidade definida entre o Velho e Novo Testamentos no entendimento holístico da natureza humana. A noção de imortalidade da alma, conquanto popularmente crida por outros ao tempo de redação do Novo Testamento, está ausente dos escritos do Novo Testamento porque seus autores foram fiéis aos ensinos do Velho Testamento.
       O Novo Testamento revela não só continuidade com o Velho Testamento no entendimento da natureza e destino humanos, mas também uma compreensão ampliada à luz da encarnação e ensinos de Cristo. Afinal de contas, Cristo é a verdadeira cabeça da raça humana, desde que Adão “era um tipo daquele que havia de vir” (Rom. 5:14).  Enquanto no Velho Testamento a natureza humana primariamente se relaciona com Adão por virtude da criação e Queda, no Novo Testamento a natureza humana se relaciona com Cristo por virtude de Sua encarnação e redenção. Cristo é o cumprimento da revelação sobre a natureza humana, seu significado e destino. Cristo oferece um significado mais profundo da alma, corpo e espírito humanos porque o efeito imediato de Sua redenção foi a dádiva de Seu Espírito que “habita convosco e está em vós” (João 14:17).

PARTE I: A NATUREZA HUMANA COMO ALMA

       A palavra grega psychê-alma é empregada no Novo Testamento em harmonia com os significados básicos do hebraico nephesh-alma que encontramos no Velho Testamento. Passaremos brevemente em revista o significado básico de psychê-alma, dando especial atenção ao significado expandido da palavra à luz dos ensinos e ministério redentor de Cristo.

       Alma Como Pessoa. A alma-psychê no Novo Testamento denota a pessoa integral no mesmo sentido de nephesh no Velho Testamento. Por exemplo, em sua defesa perante o Sinédrio, Estêvão menciona que “setenta e cinco almas-[psychê]” da família de Jacó desceram ao Egito, um numeral e emprego encontrado no Velho Testamento (Gên. 46:26, 27; Êxo. 1:5; Deut. 10:22). No dia de Pentecoste, “três mil almas-[psychê]” (Atos 2:41) foram batizadas e “em cada alma-[psychê] havia temor” (Atos 2:43). Falando da família de Noé, Pedro declara que “oito almas-[psychê] foram salvas pela água” (1 Ped. 3:20). É evidente que em textos como esses a “alma-psychê” é empregada como um sinônimo para pessoa.
       Dentro deste contexto, mencionamos a famosa promessa de Cristo de descanso para as “almas-[psychê]” daqueles que aceitam o Seu jugo (Mat. 11:28). A expressão “descanso para as vossas almas-[psychê]” procede de Jeremias 6:16, onde descanso para a alma é prometido àquele que caminha de acordo com os mandamentos de Deus. O descanso que Cristo concede à alma, como Edward Schweizer assinala, “difere completamente do que encontramos no mundo grego, onde a alma encontra descanso quando é libertada do corpo, pois aqui a unidade e totalidade do homem é mantida. Nos seus atos físicos em obediência é que o homem encontra o descanso de Deus”.11 Cristo dá descanso (paz e harmonia interiores) às almas daqueles que aceitam Sua graciosa provisão de salvação (“vinde a Mim”) e vivem em harmonia com os princípios de vida que Ele ensinou e exemplificou (“aprendei de Mim”).

       Alma Como Vida. O sentido mais freqüente da palavra alma-psychê no Novo Testamento é o de “vida”. De acordo com uma contagem, 46 vezes psychê é traduzida como “vida”.12 Nesses casos, “vida” propicia uma tradução adequada do grego psychê porque é empregada com referência à vida física. Para facilitar a identificação da palavra alma-psychê encontrada no texto grego, psychê será traduzida literalmente como “alma” em lugares onde a RSV [Revised Standard Version, em inglês] verte como “vida”.
       No auge da tempestade, Paulo dá garantias aos membros da embarcação de que “nenhuma vida se perderá” (Atos 27:22; cf. 27:10). Neste contexto, o termo grego psychê é corretamente traduzido como “vida” porque Paulo está falando a respeito da perda de vidas. Um anjo disse a José: “Dispõe-te, toma o menino e sua mãe, e vai para a terra de Israel; porque já morreram os que atentavam contra a vida [psychê, “alma”-VKJ] do menino” (Mat. 2:20). Esta é uma das muitas referências de buscar, matar e salvar a alma-psychê, expressões todas que sugerem que a alma não é uma parte imortal da natureza humana, mas a própria vida física que pode estar sob perigo. Segundo o Velho Testamento, a alma-psychê é posta à morte quando o corpo morre.
       Jesus associou a alma com alimento e bebida. Disse ele: “Não andeis ansiosos pela vossa vida [“alma”-VKJ], quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida [“alma”-VKJ] mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes?” (Mat. 6:25). Aqui a alma-psychê associa-se a comida e bebida e o corpo (o exterior visível) com roupa. Ao associar a alma com comida e bebida, Jesus mostra que a alma é o aspecto físico da vida, conquanto Ele explique que há mais a se cuidar na vida do que comida e bebida. Os crentes podem elevar seus desejos e pensamentos às coisas celestiais e viver para Cristo e para a eternidade. Assim, Cristo expandiu o significado de “alma” por incluir a vida mais elevada ou vida eterna que veio oferecer à humanidade. Permanece o fato, contudo, de que por associar a alma com comida e bebida, Cristo revela que a alma é o aspecto físico de nossa existência e não um componente imaterial de nossa natureza.

       Salvando a Alma Por Perdê-la
. No Velho Testamento, descobrimos que a alma-nephesh é empregada freqüentemente para denotar a incerteza da vida, constantemente defrontando a possibilidade de ferir-se ou mesmo de destruição. Por conseguinte, os antigos israelitas preocupavam-se com a salvação da alma, livrar a alma, restaurar a alma à segurança, e suster a alma mediante provisões, especialmente alimento. Nesse contexto, deve ter parecido algo paradoxal para os judeus ouvirem Cristo dizer: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida [psychê], perdê-la-á; e quem perder a sua vida [psychê] por causa de mim e do evangelho, salva-la-á” (Marcos 8:35; cf. Mateus 16:25; 10:39; Lucas 9:24; 17:33; João 12:25).
       O impacto da declaração de Cristo sobre os judeus deve ter sido dramático, porque Ele teve a audácia de proclamar que suas almas só poderiam salvar-se por perdê-las nesse propósito. A noção de salvar almas por perdê-las era desconhecida para os judeus porque não se acha no Velho Testamento. Cristo demonstrou  o Seu ensino agindo num modo que culminou em Sua própria crucifixão. Ele veio “dar a sua vida [psychê] em resgate por muitos” (Mateus 20:28). Como o Bom Pastor, Ele “dá a vida [psychê] pelas ovelhas” (João 10:11). Ao ensinar que a fim de salvar a alma é necessário que o indivíduo a perca, a ela renunciar e perdê-la Cristo ampliou o sentido veterotestamentário de nephesh-alma como vida física tornando-a inclusiva da vida eterna recebida por aqueles desejosos de sacrificar a vida presente (alma) por Sua causa.
       Encontramos confirmação para o sentido ampliado de alma na redação de João da mesma declaração de Cristo: “Quem ama a sua vida [psychê], perde-a; mas aquele que odeia a sua vida [psychê] neste mundo, preserva-la-á para a vida eterna” (João 12:25). A correlação entre “este mundo” e “vida eterna” indica que alma-psychê é empregada para referir-se tanto à vida terrena quanto à vida eterna. Na versão joanina da declaração de Cristo é evidente que a alma não é imortal, porque, como Edward Schweizer assinala, “doutro modo não devíamos ser instados a detestá-la. Psychê é a vida dada ao homem por Deus e que mediante a atitude do homem para com Deus recebe o seu caráter como mortal ou eterno. . . . Daí nunca lermos da psychê aionios ou athanatos (alma eterna ou imortal), somente da psychê (alma) que é dada por Deus e mantida por Ele para zoe aionios [vida eterna]”.13
       O significado de alma como vida eterna aparece também em Lucas 21:19, onde Cristo declara: “É na vossa perseverança que ganhareis as vossas almas”. O contexto indica que Cristo não está falando da preservação da vida terrena, porque Ele prediz que alguns de seus seguidores serão traídos e postos à morte (v. 16). Aqui a alma-psychê é claramente entendida como vida eterna conseguida por aqueles dispostos a fazerem um compromisso total, sacrifical com Cristo.
       A promessa de que a alma-vida será salva quando é sacrificada por Cristo demonstra que o que Cristo tinha em vista é a vida plena e verdadeira que Ele oferece àqueles que O aceitam como Seu Salvador. A vida em Cristo não difere da vida natural porque é a vida experimentada por aqueles que estão livres de tentar preservá-la. É uma vida liberta, aberta, que oferece um senso de cumprimento à vida natural. Este é o sentido ampliado que Cristo atribui à alma; um sentido que nega a noção da alma como uma entidade imaterial, imortal que coexiste com o corpo.
       A Igreja Apostólica assimilou este sentido ampliado da alma como denotando uma vida de total comprometimento com o Salvador. Judas e Silas tornaram-se homens que “têm exposto a vida [psychê] pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Atos 15:26). Epafrodito arriscou “sua  vida [psychê]” pela obra de Cristo (Fil. 2:30). O próprio apóstolo Paulo testificou: “Em nada considero a vida [psychê] preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus” (Atos 20:24). Se Paulo cria que a alma é imortal, é improvável que a teria visto como sem valor e digna de ser perdida pela causa do evangelho. Estes textos mostram que a Igreja Apostólica vivia segundo o novo sentido ampliado da alma por viver uma vida de total comprometimento sacrifical para com Cristo. Os crentes compreendiam que suas almas como vida física podiam ser salvas somente por consagrá-las ao serviço de Cristo.
       O erro mais tolo que qualquer um pode cometer é “ganhar o mundo todo e perder a sua alma [psychê]”. (Mar. 8:36). É essa alma-psychê, a vida que transcende a morte, que é o objeto primário da redenção (Heb. 10:39; 13:17; Tiago 1:21; 1 Ped. 1:9, 22). Conquanto o termo “alma” seja empregado com consideravelmente menos freqüência no Novo Testamento do que no Velho, essas passagens-chave indicam uma significativa expansão em seu sentido. O termo chegou a incluir o dom da vida eterna recebido por aqueles que estão dispostos a sacrificar sua vida presente pela causa de Cristo.
       Em bem poucos casos é a alma-nephesh empregada no Velho Testamento para denotar a vida que transcende a morte. Um exemplo disso é o Salmo 49:15: “Deus remirá a minha alma do poder da morte, pois Ele me tomará a Si”. É esse sentido de alma como vida além da morte que chega a ser ampliado  no ensino de Jesus a respeito de perder e achar a alma. A continuidade entre a vida presente e futura é garantida, não pela residência de uma alma imortal no homem, mas pela fidelidade de Deus que concederá vida eterna aos crentes.
       A vida física e a vida eterna não são duas realidades diferentes, porque ambas são concedidas por Deus. A alma abrange ambas porque a vida eterna é a vida física vivida para Deus. Afinal de contas, a vida física é a única forma de existência de que temos conhecimento. Mas o sentido ambivalente de alma serve para nos recordar que a vida humana não é apenas saúde e riqueza; é uma vida vivida em relacionamento com Deus.
       O duplo sentido bíblico de alma como vida física e eterna nega a distinção helenista entre corpo e alma, entre a vida do corpo na terra e a vida da alma no céu. De um ponto de vista bíblico, a vida do corpo é a vida da alma, porque a forma como uma pessoa vive esta presente vida determina o destino da alma como sendo vida eterna ou destruição eterna. A alma, pois, não é uma substância que sobrevive ao corpo por ocasião da morte; é a vida que vivemos pela graça de Deus e que será revelada e consumada por Deus no Juízo Final.

       A Alma e a Carne
. Um importante texto no Novo Testamento põe a alma-psychê em clara antítese com a carne-sarx. Acha-se em 1 Pedro 2:11 onde o apóstolo declara: “Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais [sarx] que fazem guerra contra a alma [psychê]”. Edward Schwizer declara que este é o emprego mais helenístico de alma no Novo Testamento, uma vez que a clara antítese entre alma-psychê e carne-sarx pode sugerir uma composição dualística da natureza humana.
       Um exame mais detido do texto, contudo, mostra que Pedro foi influenciado, não pelo dualismo grego, mas pelo entendimento neotestamentário de alma-nephesh. No Velho Testamento, descobrimos que a alma-nephesh estava constantemente em perigo e precisava ser protegida. O mesmo é verdade na admoestação de Pedro. A diferença é que Pedro está-se referindo a um inimigo “interno” que ataca a alma a partir de dentro. O inimigo são as paixões carnais que fazem guerra contra a alma levando uma pessoa a viver somente para satisfazer os apetites físicos.
       Pedro vê a alma, não como uma entidade imaterial que sobrevive ao corpo por ocasião da morte, mas como a vida de fé santificada pela obediência à verdade revelada de Deus. Ele expressa este ponto de vista na mesma epístola ao dizer: “obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas [psychê]” (1 Ped. 1:9), “tendo purificado as vossas almas [psychê], pela vossa obediência à verdade” (1 Ped. 1:22). Uma vez que a salvação da alma (vida eterna) é o resultado de uma vida de fiel obediência à verdade, as paixões carnais ameaçam a alma (vida eterna) porque levam uma pessoa a viver de modo infiel e em desobediência à verdade. Destarte, a antítese entre carne e alma nesta passagem é ética e não ontológica, ou seja, é entre uma vida de desobediência (carne) e uma de obediência (alma). Veremos logo mais que Paulo expressa a mesma antítese contrastando a carne com o espírito.

       Deus Tem Poder de Destruir a Alma. Esse sentido ampliado do termo alma-psychê nos ajuda a compreender uma bem-conhecida, porém muito mal-entendida declaração de Cristo: “Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo” (Mat. 10:28; cf. Lucas 12:4). Os dualistas encontram neste texto apoio para o conceito de que alma é uma substância imaterial que é mantida em segurança e sobrevive à morte do corpo. Robert Morey, por exemplo, alega que “Cristo aqui [Mat. 10:28] claramente diz que enquanto podemos matar ou eliminar a vida física de um corpo, não podemos matar ou prejudicar a alma, ou seja, o eu transcendente e imaterial, a mente ou ego. Ele emprega a dicotomia corpo/alma que se acha por toda parte na Escritura”.14
       Essa interpretação reflete o entendimento dualístico grego da natureza humana e não o ponto de vista holístico bíblico. A referência ao poder de Deus de destruir a alma [psychê] e o corpo no inferno nega a noção de uma alma imortal, imaterial. Como pode a alma ser imortal se Deus a destrói com o corpo no caso dos pecadores impenitentes? Oscar Cullmann apropriadamente observa que “ouvimos na declaração de Jesus em Mateus 10:28 que a alma pode ser morta. A alma não é imortal”.15
       Na discussão precedente vimos que Cristo expandiu o sentido da alma-psychê para denotar não somente a vida física, mas também a vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrifical a Ele. Se este texto for lido à luz do sentido ampliado dado por Cristo à alma, o significado da declaração será: “Não temais aqueles que podem trazer vossa existência terrena (corpo-soma) a um fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; mas temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral eternamente”.

       A Morte da Alma É Morte Eterna. A advertência de Cristo dificilmente ensina a imortalidade da alma. Antes, ensina que Deus pode destruir a alma bem como o corpo. Edward Fudge acentua acertadamente que “a menos que Jesus esteja fazendo ameaças à toa, a própria advertência implica que Deus executará tal sentença sobre aqueles que persistentemente se rebelam contra Sua autoridade e resistem a toda abertura de misericórdia”.16 Fudge prossegue declarando: “A advertência de Nosso Senhor é clara. O poder do homem para matar detém-se com o corpo e o horizonte da Presente Era. A morte que o homem inflige não é final, pois Deus chamará os mortos da Terra e concederá a imortalidade aos justos. A habilidade de Deus em matar e destruir não conhece limites. Atinge mais profundamente do que o físico e vai além do presente. Deus pode matar o corpo e a alma, tanto agora quanto no além”.17
       Lucas reproduz a declaração de Cristo omitindo a referência à alma. “Não temais os que matam o corpo e, depois disso, nada mais podem fazer. Eu, porém, vos mostrarei a quem deveis temer: Temei aquele que depois de matar, tem poder para lançar no inferno” (Lucas 12:4, 5). Lucas omite a palavra alma-psychê, referindo-se, em vez disso, à pessoa integral que Deus pode destruir no inferno. É possível que a omissão do termo “alma-psychê” fosse intencional para impedir um malentendido na mente de leitores gentios acostumados a pensar na alma como um componente independente e imortal que sobrevive à morte. Para tornar claro que nada sobrevive à destruição divina de uma pessoa, Lucas evita empregar o termo “alma-psychê” que poderia ser confuso para os seus leitores gentios.
       Achamos confirmação para esta interpretação em Lucas 9:25, onde ele novamente omite o termo psychê-alma; “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo [eauton]?”. Presumivelmente, Lucas empregou aqui o pronome “ele” em lugar de alma-psychê, como empregado em Marcos 8:36, porque o último, como Edward Schweizer sugere, “poderia ser mal entendido [pelos leitores gentios] como punição da alma após a morte”.18 Por empregar, em vez disso, o pronome “ele”, Lucas indica que Jesus quis dizer a perda da pessoa inteira.
       Quando temos em mente o sentido ampliado que Cristo faz do termo “alma”, então o sentido de Sua declaração faz-se clara. Matar o corpo significa tirar a vida presente de sobre a Terra. Mas isso não mata a alma, ou seja, a vida eterna recebida por aqueles que aceitaram a provisão da salvação de Cristo. Tirar a vida presente significa pôr uma pessoa a dormir, mas uma pessoa não é finalmente destruída até a segunda morte, a qual, como veremos, é comparada na Escritura com o inferno.
       O sentido da declaração de Cristo em Mateus 10:28 é ilustrado por Suas palavras quanto à filha de Jairo, de que ela não estava morta, mas dormia (Mat. 9:24). Ela estava de fato morta (“matar o corpo”), mas, uma vez que iria despertar na ressurreição, poderia com justiça ser tida por apenas adormecida. O seu destino final não havia sido ainda decidido. Do mesmo modo, uma vez que todos os mortos serão ressuscitados no dia final, ao jazerem em suas sepulturas suas almas, ou seja, a vida que têm vivido por ou contra Jesus Cristo, ainda está no aguardo de seu destino final: salvação eterna para os crentes e destruição eterna do corpo e alma no inferno, sobre que Jesus advertiu.
       A preservação da alma no ensino de Cristo não é um processo automático no poder da própria alma, mas um dom de Deus recebido por aqueles que estão dispostos a sacrificarem sua alma (a vida presente) por Ele. Esse sentido expandido de alma relaciona-se intimamente com o caráter ou personalidade de um crente. Pessoas ou forças malignas podem matar o corpo, a vida física, mas não podem destruir a alma, o caráter ou personalidade de um crente. Deus comprometeu-Se a preservar a individualidade, personalidade, e caráter de cada crente. Por ocasião de Sua vinda, Cristo ressuscitará aqueles que morreram Nele, restaurando-lhes a alma, isto é, seu caráter e personalidade distintos.

       A Alma de Um Corpo Morto. À luz da discussão precedente, agora consideraremos outra declaração freqüentemente mal interpretada feita por Paulo quando da ressurreição de Eutico. Durante uma reunião de despedida em Troas, onde Paulo falou extensamente, um jovem, chamado Eutico, caiu em sono profundo, e desabou do terceiro andar, e morreu. Em Atos 20:10 lemos que “Descendo, porém, Paulo inclinou-se sobre ele e, abraçando-o, disse: Não vos perturbeis, que a vida nele está”.
       Este evento faz paralelo com a ocasião em que Elias (1 Reis 17:17) e mais tarde Eliseu (2 Reis 4:32-36) deitaram-se sobre uma criança cuja alma [nephesh] a ele retornou. Os dualistas interpretam esses episódios como indicadores de que a alma é uma entidade independente que pode retornar após deixar o corpo. Essa interpretação é desacreditada por duas destacadas considerações. Primeiro, no caso de Eutico, Paulo disse, “sua alma [psychê, VKJ] está nele”, conquanto seu corpo jazesse morto. Isso significa que Paulo não cria que a alma é uma entidade imaterial que deixa o corpo por ocasião da morte. A alma ainda estava em Eutico, não porque não houvesse partido ainda, mas porque, ao abraçar-se com o jovem, Paulo sentiu que a sua respiração estava retornando e assim ele recobrava a vida. Ele era ainda uma alma vivente.
       Em segundo lugar, para entender o que ocorreu no caso de Eutico e da criança ressuscitada por Elias e Eliseu, precisamos nos lembrar que a Bíblia vê a morte como uma criação ao reverso. Por ocasião da criação, o homem se torna uma alma vivente quando o corpo, feito do pó da terra, começa a respirar  em resultado do soprar divino do fôlego de vida no seu interior. Por ocasião da morte, uma pessoa cessa de ser uma alma vivente quando o corpo dá o último suspiro e retorna ao pó. No caso de Eutico e das crianças, a respiração deles milagrosamente retornou e assim fizeram-se novamente almas viventes.

       Paulo e a Alma. Em comparação com o Velho Testamento, ou mesmo os Evangelhos, o emprego do termo alma-psychê nos escritos de Paulo é raro. Ele emprega o termo apenas 13 vezes
19 (incluindo citações do Velho Testamento) para referir-se ao corpo físico (Rom. 11;3; Fil. 2:30; 1 Tess. 2:8), uma pessoa (Rom. 2;9; 13:1), e a sede da vida emocional (Fil. 1:27; Col. 3:23; Efé. 6:6). É digno de nota que Paulo nunca emprega psychê-alma para denotar a vida que sobrevive à morte. A razão poderia ser o temor de Paulo de que o termo psychê-alma pudesse ser entendido erradamente pelos conversos gentios segundo o ponto de vista grego da imortalidade inata.
       Para assegurar que a nova vida em Cristo seria vista inteiramente como um dom divino, e não como uma posse inata, Paulo emprega o termo pneuma-espírito, em lugar de psychê-alma. Mais tarde neste capítulo, examinaremos o emprego que Paulo faz do termo “espírito”. O apóstolo certamente reconhece uma continuidade entre a vida presente e a ressurreição da vida, mas uma vez que ele a  vê como um dom de Deus e não como algo encontrado na natureza humana, emprega, em vez disso, pneuma-espírito.20
       Na sua famosa passagem sobre a ressurreição em 1 Coríntios 15, Paulo demonstra que emprega alma-psychê de acordo com o sentido veterotestamentário de vida física. Ele explica que o primeiro Adão tornou-se “alma vivente” e o último Adão (Cristo) “espírito [pneuma] vivificante”. Ele aplica a mesma distinção à diferença entre o corpo presente e o corpo da ressurreição. Escreve ele: “Semeia-se corpo natural [psychikon, “físico”-VKJ] ressuscita corpo espiritual [pneumatikon]”. O presente corpo é psychikon, literalmente “almoso” derivado de psychê-alma, denotando um organismo físico sujeito à lei do pecado e da morte. O futuro corpo ressurreto é pneumatikon, literalmente “espiritual”, derivado de pneuma-espírito, com o sentido de um organismo controlado pelo Espírito de Deus.
       O corpo ressurreto é chamado “espiritual”, não por ser não-físico, mas por ser governado pelo Espírito Santo, em lugar de impulsos carnais. Isso se torna evidente quando notamos que Paulo aplica a mesma distinção entre o natural-psychikos e o espiritual-pneumatikos para com a vida presente em 1 Coríntios 2:14, 15. Aqui Paulo distingue entre o homem-psychikos natural, que não é guiado pelo Espírito de Deus, e o homem espiritual [pneumatikos], que é guiado pelo Espírito de Deus.

       Nenhuma Imortalidade Natural. É evidente que para Paulo a continuidade entre o corpo atual e o futuro deve encontrado, não no sentido ampliado de alma que encontramos nos evangelhos, mas no papel do Espírito de Deus que nos renova em novidade de vida tanto agora quanto por ocasião da ressurreição. Ao dar enfoque ao papel do Espírito, Paulo nega a imortalidade da alma. Para ele é muito importante esclarecer que a nova vida do crente, tanto no presente quanto no futuro, é inteiramente um dom do Espírito de Deus. Nada há inerentemente imortal na natureza humana.
       A expressão “imortalidade da alma” não ocorre na Escritura. A palavra grega comumente traduzida como “imortalidade” em nossas versões em inglês na Bíblia é athanasia. Tal termo ocorre somente duas vezes no Novo Testamento, a primeira vez em ligação com Deus, “o único que possui a imortalidade” (1 Tim. 6:16). Obviamente, imortalidade aqui significa mais do que existência infindável. Significa que Deus é a fonte de vida (João 5:26) e todos os outros seres recebem vida eterna Dele.
       A segunda vez, a palavra “imortalidade-athanasia” ocorre em 1 Coríntios 15:53, 54 em relação com a natureza mortal, que se reveste da imortalidade por ocasião da ressurreição: “Porque é necessário que este corpo corruptível se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da imortalidade [athanasia]. E quando este corpo corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de imortalidade [athanasia], então se cumprirá a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória”. Paulo não está falando da imortalidade natural da alma, mas da transformação de mortalidade para imortalidade que os crentes experimentarão quando Cristo retornar. As implicações desta passagem são claras: a natureza humana não é concedida com qualquer forma de imortalidade natural, porque é perecível e mortal. A imortalidade não é uma possessão presente; é um dom a ser concedido aos crentes por ocasião da vinda de Cristo.
       Na filosofia de Platão, a alma é considerada indestrutível, porque partilha de uma substância eterna incriada que o corpo não possui. É lamentável que o dualismo platônico cegou a mente até mesmo de grandes reformadores como Calvino, que chegou ao ponto de dizer que “dificilmente alguém, exceto Platão, corretamente afirmou a substância imortal [da alma]”.21 Ele prossegue: “Na verdade, a partir da Escritura temos já ensinado que a alma é uma substância incorpórea; agora precisamos acrescentar que, conquanto apropriadamente não seja espacialmente limitada, contudo, estabelecida no corpo, ali reside como numa casa; não somente animando todas as partes e tornando seus órgãos adequados e úteis para suas ações, mas também pode ocupar o primeiro lugar em governar a vida do homem, não somente com respeito aos deveres de sua vida terrena, mas ao mesmo tempo despertá-lo a honrar a Deus”.22
       É difícil crer que um estudante tão dedicado da Bíblia como Calvino poderia interpretar tão grosseiramente os ensinos bíblicos concernentes à natureza humana. Isso serve para nos lembrar quão facilmente a mente humana pode tornar-se tão condicionada  pelo erro que deixa de discernir a verdade bíblica. Na Bíblia, a alma não é uma “substância incorpórea e imortal”, mas vida física e regenerada, criada e sustida por Deus e Dele dependente para sua existência.
       Não há qualidade inerente na natureza humana que possa tornar uma pessoa indestrutível. A Esperança Cristã é baseada, não na imortalidade da alma, mas na ressurreição do corpo. Se desejarmos empregar a palavra “imortalidade” com referência à natureza humana, falemos, não da imortalidade da alma, mas da imortalidade do corpo (a pessoa integral) por meio da ressurreição. É a ressurreição que concede o dom da imortalidade ao corpo, ou seja, sobre a pessoa do crente.

       Alma Como Aspecto Mortal da Natureza Humana. A definição paulina do corpo presente como psychikon-físico (literalmente “almoso”), ou seja, corruptível e mortal, claramente mostra que ele identifica a alma com o aspecto físico e mortal de nossa existência humana. Isto está em harmonia com a visão veterotestamentária da alma-nephesh como o aspecto físico e mortal da vida. É evidente que a noção de imortalidade da alma acha-se totalmente ausente dos ensinos de Paulo e da Bíblia como um todo. Mas essa definição de alma oferece um problema. Como se pode conciliar a noção de que os seres humanos são mortais por natureza com a declaração de Paulo em Romanos 5:12 de que a morte veio a este mundo “pelo pecado”, e não por causa da natureza física mortal humana?
       A solução dessa aparente contradição deve ser achada no reconhecimento de que, como declarado por Wheeler Robinson, “Paulo concebia o homem como sendo mortal por sua natureza original, mas com a possibilidade de imortalidade; isto, contudo, ele perdeu quando foi expulso do Éden, e, portanto, da árvore da vida, que nutriria nele a imortalidade; assim a morte veio mediante o pecado”.23
       Paulo não explica como o homem, mediante a desobediência, perdeu a possibilidade de tornar-se imortal. Sua preocupação é mostrar como Cristo nos redimiu da trágica conseqüência do pecado, a morte. Os ensinos de Paulo, entretanto, dão apoio ao que ele pode ter visto como duas verdades complementares: a real mortalidade da natureza humana, por um lado, e a justiça dessa mortalidade como penalidade pela desobediência humana.

       Alma e Espírito. A distinção entre alma e espírito aparece em duas outras importantes passagens neotestamentárias que precisamos considerar brevemente. A primeira é 1 Tessalonicenses 5:23, e a segunda é Hebreus 4:12. Escrevendo aos tessalonicenses Paulo declara: “O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Tess. 5:23).
       Alguns apelam a este texto para defender o ponto de vista de que o homem foi criado como um ser tripartite na criação, consistindo de um corpo, uma alma e um espírito, cada qual como uma entidade separada. Os católicos reduzem os três em dois fundindo o espírito com a alma. O novo Catecismo da Igreja Católica refere-se a este texto para explicar que “‘espírito’ significa que desde a criação o homem é disposto a um fim sobrenatural e que sua alma pode graciosamente ser erguida acima de tudo quanto merece para comunhão com Deus”.24 Para os católicos, o espírito e a alma são essencialmente um, porque é o espírito que cria cada alma como uma entidade espiritual, imortal. Como o Catecismo expõe: “A Igreja ensina que toda alma espiritual é criada imediatamente por Deus--não é ‘produzida’ pelos pais--e também é imortal: não perece quando se separa do corpo por ocasião da morte”.25
       Esse ensino católico tradicional ignora o ponto de vista holístico fundamental da natureza humana. De acordo com a Bíblia, a alma não é uma substância imortal que se separa do corpo quando da morte, mas a vida física e mortal que pode tornar-se imortal para aqueles que aceitam o dom de Deus da vida eterna. Tornar o Espírito subserviente à suposta natureza “espiritual” e imortal da alma significa ignorar que uma função vital do Espírito de Deus é conceder vida a nossos corpos mortais: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita” (Rom. 8:11).
       Devemos observar, primeiramente, que 1 Tessalonicenses 5:23 não é uma declaração doutrinal, mas uma oração. Paulo ora para que os tessalonicenses possam ser plenamente santificados e preservados irrepreensíveis até a vinda de Cristo. É evidente que quando o apóstolo ora para que o espírito, alma, e corpo dos tessalonicenses sejam preservados irrepreensíveis não está ele tentando dividir a natureza humana em três partes, mais do que Jesus quis dividir a natureza humana em quatro partes quando declarou: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Marcos 12:30).

       “Espírito, Alma, e Corpo”. A chave para entender a referência de Paulo a “espírito, alma, e corpo” em 1 Tessalonicenses 5:23 é o fato de que o apóstolo está-se dirigindo a cristãos fiéis que, enquanto ainda estão na carne (corpo), possuem duas naturezas: a natureza adâmica original recebida por ocasião do nascimento (a alma) e a nova natureza espiritual criada dentro deles pelo poder capacitador do Espírito. A natureza adâmica, como vimos anteriormente, é chamada de “alma-psychê” e denota os vários aspectos da vida física associados com a alma na Bíblia. A natureza espiritual é chamada “espírito” porque é o Espírito de Deus que renova e transforma a natureza humana. O corpo é, logicamente, a parte exterior, visível da pessoa.
       A oração de Paulo pelos tessalonicenses para manterem sua “alma-psychê” irrepreensível e íntegra para a vinda de Cristo significa que eles não deviam viver somente para a vida física (Mat. 6:25; Atos 20:24), que é ameaçada pela morte, mas também pela vida superior, eterna que transcende a morte. Semelhantemente, a oração de Paulo para que os tessalonicenses mantenham seus corpos saudáveis e irrepreensíveis significa que não deviam dar satisfação “à concupiscência da carne” (Gál. 5:16) ou produzir “as obras da carne” tais como fornicação, impureza, e lascívia (Gál. 5:19).
       Finalmente, a oração de Paulo para que eles mantenham seu espírito íntegro e irrepreensível  significa que seriam conduzidos pelo Espírito (Gál. 5:18) e produziriam “o fruto do Espírito” como amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, fidelidade (Gál. 5:22). Destarte, a oração de Paulo para que os tessalonicenses conservem o corpo, alma e espírito íntegros e irrepreensíveis não tem intenção de alistar os componentes estruturais da natureza humana, mas realçar o estilo de vida integral daqueles que aguardam a vinda de Cristo. A distinção entre os três é ética, e não ontológica.
       O segundo texto em que o mesmo contraste aparece entre alma e espírito se acha em Hebreus 4:12: “Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma [psychê] e espírito [pneuma], juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”. A questão aqui é se a Palavra de Deus separa a alma e espírito ou se penetra ambos. Edward Schweizer acertadamente observa que “uma vez que é difícil imaginar a divisão de juntas e medulas, o texto está provavelmente dizendo que a Palavra penetrou o pneuma [espírito] e a psychê [alma] como o fez com juntas e medulas”.26
       Tendo em mente que a alma e o espírito denotam, respectivamente, os aspectos físicos e espirituais da vida humana, o texto declara que a Palavra de Deus penetra e escrutiniza toda a existência humana, mesmo os mais íntimos recessos de nosso ser. O estudo da Escritura nos revela se nossos desejos, aspirações, emoções e pensamentos são inspirados pelo Espírito de Deus ou por considerações carnais egoístas. O texto simplesmente diz que a Palavra de Deus penetra-nos o íntimo de modo a trazer à luz os motivos secretos de nossas ações.
       De certo modo esta passagem corre paralelamente ao que Paulo declara em 1 Coríntios 4:5: “O Senhor . . . não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações”. Portanto, ninguém tem razão para interpretar Hebreus 4:12 como ensinando uma distinção estrutural na natureza humana entre a alma e o espírito.
As passagens acima que distinguem entre alma e espírito nada têm a dizer com respeito à imortalidade da alma. Elas não sugerem que um membro do par poderia sobreviver separado do outro por ocasião da morte, ou que se refiram a substâncias diferentes. Pelo contrário, o papel do Espírito de Deus como o agente de renovação moral nesta vida presente e da ressurreição para a vida eterna ao final nega a noção de imortalidade da alma porque a única imortalidade é a que nos é concedida pelo Espírito de Deus ao final.

       A Alma Como Lugar de Sentimento e Raciocínio. A discussão precedente demonstrou que o termo “alma-psychê” é geralmente empregado no Novo Testamento para denotar a vida física que pode tornar-se vida eterna quando vivida pela fé por causa de Cristo.  Poucos exemplos existem em que o termo alma-psychê é usado como o centro de sentimento e a fonte dos pensamentos e ações. Os cristãos de Antioquia estavam perturbados com falsas instruções procedentes de pessoas que estavam “transtornando as vossas almas” (Atos 15:24). Aqui a “alma-psychê” refere-se à mente dos crentes que estavam confusos por instruções desorientadoras.
       Um uso semelhante do termo se acha em João 10:24 onde os judeus perguntam a Jesus: “Até quando nos deixarás a mente [“alma-psychê”-VKJ] em suspenso? Se tu és o Cristo, dize-o francamente”. Aqui a “alma-psychê” é a mente com que decisões são feitas em favor ou contra Cristo. A alma como mente pode ser influenciada para o bem, como também para o mal. Portanto, lemos que Paulo e Barnabé estavam em Antioquia “fortalecendo as almas-psychê dos discípulos, exortando-os a permanecer firmes na fé” (Atos 14:22). Neste caso, as almas são as pessoas que eram influenciadas e movidas em pensamento e sentimento.
       Em Lucas encontramos um exemplo interessante em que “alma” refere-se tanto a atividades físicas quanto psíquicas. O homem rico cuja terra havia produzido em abundância, assim se expressou: “Então direi à minha alma”-psychê: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te (12:19).  Embora aqui a ênfase seja sobre o aspecto físico da vida, tal como o comer, beber e alegrar-se, o fato de que a alma expressa satisfação sugere uma função física. No verso seguinte, Deus pronuncia o Seu juízo sobre tal alma satisfeita: “Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma” (Lucas 12:20). O texto sugere que a vida ou morte da alma será, por fim, o dom ou a punição da parte de Deus.
       Todos os evangelhos sinópticos relatam a famosa declaração de Cristo onde a alma é empregada como um perfeito paralelo do coração: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força” (Marcos 12:30; cf. Mateus 22:37; Lucas 10:37). Nessa declaração, citada de Deuteronômio 6:5, o coração, alma, mente e força são cada qual empregadas para expressar o amorável comprometimento emocional e racional para com Deus.

       Conclusão. Nossa pesquisa do emprego neotestamentário do termo “alma-psychê” indica que não há suporte para a noção da alma como uma entidade imaterial e imortal que sobrevive à morte do corpo.  Nada há na palavra psychê-alma que mesmo remotamente deixe implícita uma entidade consciente capaz de sobreviver à morte do corpo. Não só deixa o Novo Testamento de endossar a noção de imortalidade da alma, como também claramente mostra que a alma-psychê denota a vida física, emocional e espiritual. A alma é a pessoa como um ser vivo, com sua personalidade, apetites, emoções e habilidades racionais. A alma descreve a pessoa integral como viva e, assim, inseparável do corpo.
       Descobrimos que apesar de Cristo ter expandido o sentido de alma-psychê para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a sacrificar sua vida terrena por Ele, nunca sugeriu que a alma é uma entidade imaterial, imortal. Pelo contrário, Jesus ensinou que Deus pode destruir a alma, bem como o corpo (Mat. 10:28) dos pecadores impenitentes.
       Paulo jamais emprega o termo “alma-psychê” para denotar a vida que sobrevive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nosso organismo físico (psychikon) que está sujeito à lei do pecado e da morte (1 Cor. 15:44). Para assegurar que seus conversos gentios entendam que nada é inerentemente imortal na natureza humana, Paulo emprega o termo “espírito-pneuma” para descrever a nova vida em Cristo que o crente recebe inteiramente como um dom do Espírito de Deus tanto agora quanto na ressurreição.


PARTE II: A NATUREZA HUMANA COMO ESPÍRITO

       O estudo precedente do ponto de vista neotestamentário da alma-psychê humana revelou como Cristo expandiu o sentido do Velho Testamento de nephesh como vida física para incluir também o dom da vida eterna. O que é verdadeiro para a alma humana o é também em muitas maneiras para o espírito humano. A vinda de Cristo contribuiu para revelar o sentido e função mais amplos do espírito-ruach na redenção do homem, segundo o Velho Testamento. O significado de espírito-pneuma como princípio de vida é ampliado para incluir o princípio de nova vida de regeneração moral tornada possível mediante a redenção em Cristo.
       O espírito-pneuma é em grande medida sinônimo de psychê, sendo ambas as palavras freqüentemente usadas intercambiavelmente no Novo e Velho Testamentos. Entretanto, parece haver uma diferença entre ambas. “Espírito” é com freqüência empregada para Deus enquanto “alma” nunca é usada assim. A utilização das duas palavras no geral sugere que “espírito” representa sobretudo a orientação de uma pessoa no que respeita a Deus, enquanto a “alma” constitui a orientação de uma pessoa para com os seus semelhantes. Definindo de modo diverso, a alma geralmente descreve o aspecto físico da existência humana, enquanto o espírito denota o aspecto espiritual da existência humana (o eu interior) que traduz a relação de uma pessoa com o mundo da eternidade. Para apreciar o sentido e função neotestamentários do espírito-pneuma na natureza humana, é importante primeiro compreender o papel do Espírito na vida e ministério de Cristo.

       Cristo, o Homem do Espírito. O Novo Testamento em algum sentido real identifica a Cristo com o Espírito na obra da salvação. Como o segundo Adão, Cristo tornou-se um “espírito vivificante” (1 Cor. 14:45). O Espírito de Deus torna-se o Espírito de Cristo: “enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gál. 4:6). O “Espírito de Deus” habitando nos crentes é visto intercambiavelmente com o “Espírito de Cristo” em Romanos 8: 9, 10. O Espírito é tão identificado com a vida e ministério de Cristo que Paulo pode declarar: “O Senhor é Espírito” (2 Cor. 3:17).
       O Espírito que habita em Cristo também habita na pessoa que está “em Cristo” (Rom. 8:2). “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rom. 8:16). O efeito imediato da redenção é a concessão do Espírito “. . . que habita convosco e está em vós” (João 14:17). O Espírito que habita num crente não é uma alma imortal destacável, mas um poder divino que regenera a vida presente, tornando a pessoa uma nova criatura (Rom. 7:6; Gál. 6:8).

       Cristo é o Homem do Espírito por Excelência. Ele foi concebido pelo Espírito Santo (Mat. 1: 18, 20; Luc. 1:35). Quando do Seu batismo o Espírito Santo desceu sobre Ele na forma de uma pomba (Mar. 1:10; Atos 10:38). Após Seu batismo, Cristo “foi guiado pelo mesmo Espírito, no deserto” (Luc. 4: 1, 2). No Espírito, Ele confrontou o diabo no deserto (Mat. 4:1). Mais tarde “Jesus, no poder do Espírito, regressou para a Galiléia” (Luc. 4:14). Em Seu discurso inaugural, apresentado na sinagoga de Nazaré, Cristo aplicou a Si a predição de Isaías da unção do Messias pelo Espírito Santo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para evangelizar aos pobres. . . . Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Luc. 4: 18, 21). Capacitado pelo Espírito Santo, Cristo “andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo” (Atos 10:38).

       O Espírito de Deus e o Espírito Humano. Como o Espírito de Deus, mediado através de Cristo, se relaciona com o espírito humano? Qual é a relação entre o espírito como princípio animador de vida, presente em toda pessoa vivente, e o Espírito como princípio regenerador da vida moral ativa na vida dos crentes?  A resposta a estas indagações se encontra no reconhecimento de que tanto os aspectos físico e moral-espiritual da vida precisam do Espírito para sua existência. É por ser o homem um ser vivente animado pelo sopro do Espírito de Deus que ele é capaz de receber o Espírito Santo.
       No Velho Testamento encontramos numerosos textos segundo os quais o espírito-ruach é o fôlego de Deus que concede e sustém a vida humana. A mesma função do espírito-pneuma é expressa no Novo Testamento. Por exemplo, Tiago diz: “Porque assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (Tiago 2:26). Semelhantemente, Apocalipse 11:11 fala do espírito-pneuma de vida que entrou nos corpos mortos e eles reviveram e se ergueram. Destarte, todo ser humano tem o espírito transmissor de vida da parte de Deus dentro em si. Quando Jesus ressuscitou a filha de Jairo, “voltou-lhe o espírito, ela imediatamente se levantou” (Luc. 8:55). Já fizemos notar que o espírito que retornou era o fôlego de vida de Deus que fez a garota uma pessoa vivente outra vez.
       O espírito como princípio da vida física finalmente chegou a significar a fonte da vida psíquica, racional. Assim, o termo espírito é empregado para representar a sede do pensamento, sentimento e raciocínio, a disposição interior ou caráter do crente. Isso dá conta de muitos empregos do termo “espírito” tanto no Velho quanto no Novo Testamento. “O espírito do homem é agitado (Ez. 2:2), ou perturbado (Gên. 41:8); regozija-se (Luc. 1:47), ou é quebrantado (Êxo. 6:9); prontifica-se (Mat. 26:41), ou é endurecido (Deut. 2:30). Um homem pode ser paciente em espírito (Ecl. 7:8), altivo de espírito ou pobre de espírito (Mat. 5:3). A necessidade de governar o espírito é declarada (Prov. 25:28). É o espírito do homem que busca a Deus (Isa. 26:9), e ao espírito do homem é que o Espírito de Deus habitando no íntimo dá testemunho (Rom. 8:16)”.27

       A Atividade do Espírito na Humanidade. Sendo que o espírito-pneuma é o verdadeiro eu interior de uma pessoa, é com o espírito que um crente serve a Deus (Rom. 1:9). Uma pessoa com o espírito é capaz de desfrutar comunhão com Deus (1 Cor. 6:17). A oração e a profecia são exercícios do espírito humano (1 Cor. 14:32). A graça de Deus é concedida sobre o crente na esfera do espírito (Gál. 6:18). A renovação é experimentada no espírito (Efé. 4:23). Mediante o Espírito, Deus testemunha ao espírito dos crentes de que são filhos de Deus (Rom. 8:16).
       Tanto os aspectos físico e psíquico da vida precisam do espírito para sua existência, e assim o termo razoavelmente pode ser aplicado tanto ao princípio geral da vida física quanto ao princípio regenerador da vida moral. A nova natureza é certamente um novo princípio de vida, mas é um princípio essencialmente da vida moral que se manifesta numa santa disposição de caráter. É difícil estabelecer o exato relacionamento entre o espírito como princípio de vida e o espírito como princípio regenerador da vida moral.
       Por exemplo, algumas passagens em Romanos 8 tornam difícil decidir se o termo “Espírito” deve ser escrito com “E” maiúsculo para designar o Espírito Santo, ou com um “e” minúsculo quando referindo-se ao espírito humano redimido e renovado. Talvez Paulo tencionava permitir-nos ler suas palavras de qualquer desses modos. Os versos 5 a 9 não perdem nada de seu profundo significado se esse intercâmbio é permitido. “Os que se inclinam para a carne cogitam das cousas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das cousas do Espírito” (vs 5.). “Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vós” (vs. 9).
       A ligação entre os dois parece ser encontrada no fato de que o espírito que toda pessoa possui como um princípio transmissor de vida capacita os crentes a serem receptivos e responsivos à operação do Espírito Santo em sua vida. Noutras palavras, é o espírito como sede da vida psíquica e racional (o eu interior) , com o qual Deus capacitou cada pessoa, que torna possível ao Espírito de Deus habitar nos seres humanos. W. D. Stacey destaca este aspecto ao dizer: “Todos os homens têm pneuma [o espírito] desde o nascimento, mas o pneuma [espírito] cristão, em comunhão com o Espírito de Deus, adquire um novo caráter e uma nova dignidade (Rom. 8:10)”.28

       O Espírito Humano Capaz de Receber o Espírito de Deus. O espírito humano não tem poder para regenerar-se. Não é uma faísca divina que pode ser avivada como uma chama de fogo. Antes, é uma capacidade que Deus concedeu a toda pessoa para experimentar o poder regenerador de Seu Espírito. Quando uma pessoa é nascida de novo pelo Espírito de Deus, sua natureza “natural” (psychikos) torna-se “espiritual” (pneumatikos) (1 Cor. 2:14, 15).
       O espírito humano que é obediente a Deus experimenta o poder do Espírito de Deus que guia e transforma. Comunhão com Deus é conseguida pelo espírito humano mediante o Espírito de Deus. Claude Tresmontant descreve essa função do espírito-pneuma: “O espírito do homem, seu pneuma, é aquilo que dentro dele lhe permite um encontro com o Pneuma [Espírito] de Deus. É a parte de um homem que pode entrar em diálogo com o Espírito de Deus, não como um estranho, mas como um filho: ‘O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus’ (Rom. 8:16)”.29
       O espírito humano capacita uma pessoa a servir a Deus: “Porque Deus, a quem sirvo em meu espírito-pneuma, no evangelho de seu Filho . . ”. (Rom. 1:9). A sentença “sirvo em meu espírito” sugere que o espírito é uma capacidade mental e volitiva que capacita uma pessoa a servir a Deus. Poderíamos dizer que o espírito humano foi designado por Deus para unir-se com o Espírito Santo. Em razão de ser o homem espírito-pneuma, significando um ser vivo animado pelo fôlego do Espírito de Deus (ruach-pneuma), que é capaz de receber o Espírito-pneuma Santo e assim chegar a um relacionamento íntimo e vivo com Deus.
       Henry Barclay Swete explica a orientação humana para com o Espírito Santo: “O Espírito Santo não cria o ‘espírito’ no homem; está potencialmente presente em todo homem, mesmo se rudimentarmente e não desenvolvido. Todo ser humano tem afinidades com o espiritual e eterno. Em cada indivíduo da raça o espírito do homem que está nele (1 Cor. 2:11) responde ao Espírito de Deus, na medida em que o finito pode corresponder-se com o infinito; . . . Mas conquanto o Espírito de Deus encontre no homem uma natureza espiritual em que pode operar, o espírito humano se acha numa condição tão imperfeita e depravada que uma completa renovação, mesmo recriação, se faz necessária (2 Cor. 5:17)”.30
       Permitir ao Espírito de Deus renovar e transformar nossa vida não é renunciar a nossa própria personalidade, mas trazê-la submissa. Em harmonia com o Velho Testamento, o Novo Testamento vê a natureza humana holisticamente, onde o corpo, alma, e espírito são partes integrais do mesmo ser. O espírito é uma força, inseparável do fôlego e da vida (Lucas 8:55; 23:46) que renova a mente (Efé. 4:23) e capacita uma pessoa a tornar-se uma nova criatura, “e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Efé. 4:24).

       O Espírito Como Renascimento Espiritual. O Espírito de Deus é o agente ativo da criação e recriação. Vimos que no Velho Testamento a criação do homem é atribuída ao Espírito de Deus. O homem existe como alma vivente por causa do fôlego de Deus (Gên. 2:7). A recriação na ordem moral é também a obra do Espírito. Somos lembrados da visão dos ossos secos de Ezequiel que retornaram à existência mediante o Espírito de Deus. Os ossos secos, que representam “toda a casa de Israel” (Eze. 37:14) em sua condição foi trazida de volta à vida, ou seja, ao renascimento espiritual pelo Espírito de Deus: “Porei em vós  o meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então sabereis que eu, o Senhor, disse isto, e o fiz, diz o Senhor” (Eze. 37:14).
       No Novo Testamento, a transformação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais completamente do que no Velho Testamento, de modo especial nos escritos de João e Paulo. Os dois apóstolos descrevem este processo em formas diferentes, contudo complementares. João concebe a transformação moral interior como renascimento e Paulo como nova criação. As duas metáforas, como veremos, são complementares, cada uma designada a ajudar-nos a compreender a nova vida operada pelo Espírito Santo.
       No Evangelho de João, Jesus compara a transformação moral realizada pelo Espírito Santo a um renascimento. Falando a Nicodemos, Jesus diz: “Em verdade, em verdade te digo: Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus”  (João 3:5). Ser nascido do Espírito é contrastado com ser nascido da carne: “O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do Espírito, é espírito” (João 3:6). O nascimento físico está de acordo com a carne (kata sarka), colocando uma pessoa num nível horizontal de existência natural. O nascimento espiritual é “de cima” (João 3:3) pelo Espírito, colocando uma pessoa num nível vertical de existência pelo poder habilitador do Espírito.
       Na noite de Sua ressurreição Jesus “soprou sobre eles [os discípulos], e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo” (João 20:22). Essa ação, que assinalou a recriação dos discípulos, faz paralelo à primeira criação do homem, quando Deus soprou-lhe o fôlego de vida. A criação e recriação, nascimento e renascimento, são atos do Espírito, porque, como Jesus explicou, “espírito é o que vivifica” (João 6:63). Isto é verdade tanto no que tange à vida física quanto espiritual.
       O Espírito é a fonte imediata de vida mediada através de Cristo. “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva. Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até esse momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado”  (João 7:37-39). Cristo é a fonte meritória do Espírito, porque mediante Seu sacrifício expiatório Ele pode conceder o Seu Espírito transmissor de vida ao crente. É por isso que Paulo fala do “Espírito da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte” (Rom. 8:2).
       Sumariando, podemos dizer que conquanto João não mencione o espírito do homem como tal, ele o visualiza como cumprido e realizado pelo Espírito mediante o qual Cristo concede nova vida, um renascimento espiritual, ao crente. Em certo sentido, o significado último do fôlego de Deus como fonte da vida física é revelado e cumprido na nova vida tornada possível pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2). Em parte alguma João identifica o Espírito transmissor de vida com uma alma imaterial, imortal, capaz de destacar-se do corpo. A função do espírito é simplesmente operar um renascimento espiritual, isto é, uma transformação moral da pessoa inteira do crente. Não há dualismo em João entre um corpo material, mortal, e uma alma espiritual, imortal, porque o Espírito traz vida nova à pessoa integral.

       O Espírito Como Nova Criação. Paulo descreve a transformação moral realizada pelo Espírito, não como um renascimento, mas como uma “nova criação” (2 Cor. 5:17; cf. 1 Cor. 6:11; Gál. 3:27; 6:15; Efé. 4:24). As duas metáforas cobrem essencialmente a mesma idéia. Paulo atribui importância vital ao papel do Espírito na vida do crente. Isto é indicado pelo fato de que em suas cartas ele se refere ao espirito 146 vezes, em comparação com somente 13 referências à alma. Wheeler Robinson corretamente afirma que pneuma-espírito é “a palavra mais importante no vocabulário psicológico de Paulo, talvez em seu vocabulário como um todo”.31 A razão é que Paulo está preocupado em mostrar que salvação é exclusivamente um divino dom de graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2), e não a posse natural de uma alma imortal.
       Salvação não é a remoção do espírito ou da alma do corpo ou do mundo em que o corpo vive, mas uma renovação do corpo mediante o poder capacitador do Espírito. Portanto, a descrição de Paulo da vida cristã é em grande medida feita em termos do poder capacitador do Espírito para o crente viver segundo a vontade revelada de Deus. O apóstolo explica que Cristo veio “a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rom. 8:4).
       Andar segundo o Espírito significa pôr a mente nas “coisas do Espírito” (Rom. 8:5), ou seja, viver em conformidade com os princípios de vida que Deus revelou, em vez de sê-lo de acordo com os desejos da carne. “Andai no Espírito, e jamais satisfareis à concupiscência da carne” (Gál. 5:16). Caminhar segundo a carne (kata sarka) significa cumprir “as obras da carne” tais como “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias, e cousas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já outrora vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais cousa praticam” (Gál. 5: 19, 20). Em contraste, caminhar segundo o espírito (kata pneuma) significa produzir  “o fruto do Espírito”, representado por “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gál. 5:22, 23).
       Os efeitos da nova criação exercidos na vida do crente pelo Espírito Santo são manifestos especialmente num relacionamento de filiação; numa fé e esperança inabaláveis; num ardente amor pelos irmãos; e num ousado testemunho por Cristo. Mediante o Espírito, tornamo-nos membros da família de Deus. “E porque vós sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (Gál. 4:6).
       O Espírito instila no crente fé e esperança em Cristo. “E o Deus da esperança vos encha de todo o gozo e paz no vosso crer, para que sejais ricos de esperança no poder do Espírito Santo” (Rom. 15:13; cf. Gál. 3:14; 5:5). A nova vida do Espírito é manifesta especialmente no espírito de amor fraternal que flui de Cristo para a vida do crente. “Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rom. 5:5; cf. 15:30; Col. 1:8; 2 Cor. 6:6). O Espírito comunica força para sofrer por causa de Cristo. “Se, pelo nome de Cristo, sois injuriados, bem-aventurados sois, porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (1 Ped. 4:14).
       Finalmente, o Espírito é a miraculosa força comunicadora de vida da terceira Pessoa da Divindade que operará a ressurreição do corpo. “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita” (Rom. 8:11; cr. 1 Cor. 6:14; 2 Cor. 3:6; Gál. 6:8). Tal como o Espírito esteve em operação na primeira criação (Gên. 2:7), assim estará na ressurreição final. No capítulo 4 vemos que a Bíblia em parte alguma sugere que o corpo ressuscitado será religado a uma alma desincorporada. Em vez disso, a Bíblia ensina que este corpo terreno será ressuscitado num “corpo espiritual-pneumatikos” (1 Cor. 15:44), ou seja, uma pessoa inteiramente dominada pela força-vital do espírito divino.

       A Carne e o Espírito. O contraste que Paulo faz entre a carne e o Espírito tem levado muitos a crer que o apóstolo distingue entre o corpo material, mortal e a alma imortal, espiritual.32 Essa interpretação ignora o fato de que a antítese paulina entre a carne e o espírito não é uma dualidade de substâncias metafísicas, mas um contraste de orientação ética-religiosa.
O contraste mais acentuado entre carne e espírito acha-se na primeira parte de Romanos 8. Aqui Paulo contrasta destacadamente os que vivem “segundo a carne” com os que vivem “segundo o Espírito”. “Porque os que se inclinam para a carne cogitam das cousas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das cousas do Espírito. Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz” (Rom. 8:5, 6).
       A primeira coisa a assinalar nesta e em passagens semelhantes (Gál. 5:16-26) é que Paulo nunca emprega as palavras gregas para “corpo” e “alma” (soma e psychê). Em vez disso, ele sempre emprega um conjunto diferente de termos, como sejam, sarx e pneuma que são traduzidos como “carne” e “espírito”. Se Paulo tivesse em mente realçar a distinção entre o corpo mortal e a alma imortal, ele teria usado as palavras gregas soma (corpo) e psychê (alma) que eram padrão na doutrina dualística grega. Mas o que Paulo tinha em mente era algo inteiramente diferente, em conseqüência, ele emprega um conjunto diferente de palavras para expressá-lo.
       Não pode haver dúvida de que para Paulo “a carne” e “o Espírito” representam, não duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas duas diferentes orientações éticas. Isso se faz claro quando se compara sua lista das “obras da carne” (Gál. 5:19, 20) com o “fruto do Espírito” (Gál. 5:22, 23). Aqui novamente as duas listas mostram que “carne” e “Espírito” representam, não duas partes separadas e opostas da natureza humana, mas dois tipos diferentes de estilo de vida. Os pecados atribuídos à carne, tais como “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas” nada têm a ver com impulsos físicos. “Poderiam muito bem ser praticados por um espírito desincorporado”.33
       Charles Davis claramente expõe o significado bíblico de carne e espírito, dizendo: “Ele [Paulo] é plenamente hebreu em sua cosmovisão; ele via o homem simplesmente como uma unidade. Conseqüentemente, sua antítese de carne (sarx) e espírito (pneuma) não constitui uma oposição entre matéria e espírito, entre corpo e alma. ‘Carne’ não é parte do homem; mas o homem integral em sua fraqueza e mortalidade, em seu distanciamento de Deus, em sua solidariedade com a criação corrupta e pecaminosa. ‘Espírito’ é o homem como aberto à vida divina e como pertencendo à esfera do divino, o homem sob a influência e atividade do Espírito. Carne e espírito são dois princípios ativos que afetam o homem e estão em luta dentro dele”.34
       Numa linha semelhante de pensamento, George Eldon Ladd escreve que “carne” refere-se ao homem “como um todo, visto em suas falhas, oposto a Deus. Esse emprego é um desenvolvimento natural do emprego veterotestamentário de basar [carne], que é o homem visto em sua fragilidade e fraqueza perante Deus. Quando isto é aplicado ao reino ético, torna-se o homem em sua fraqueza ética, isto é, a pecaminosidade perante Deus. Sarx [carne] representa, não uma parte do homem, mas o homem como um todo--não regenerado, caído, pecaminoso”.35
       Carne e Espírito representam respectivamente o poder da morte e o poder da vida que podem operar dentro de uma pessoa. Oscar Cullmann oferece esta iluminadora comparação entre ambas: “‘Carne’ é o poder do pecado ou o poder da morte. Abrange o homem exterior e interior conjuntamente. Espírito (pneuma) é o seu grande antagonista: Carne e espírito são poderes ativos, e como tal operam dentro de nós. A carne, o poder da morte, entrou no homem com o pecado de Adão.   Entrou no homem completo, interior e exterior, de tal modo que está bem intimamente ligado com o corpo. O homem interior acha-se menos ligado à carne; conquanto mediante a culpa este poder da morte tenha se apossado mais e mais do homem interior. O espírito, por outro lado, é o grande poder de vida, o elemento da ressurreição; o poder de Deus da criação nos é dado mediante o Espírito Santo”.36 O poder animador do Espírito Santo é manifesto nesta vida presente em nosso “homem interior [que] se renova de dia em dia” (2 Cor. 4:16)  pelo poder transformador do Espírito (Efé. 4:23, 24).

       A Carne Como Natureza Pecaminosa Humana. A carne-sarx representa a natureza humana não-regenerada, pecaminosa, mas não porque o pecado reside na natureza humana do corpo, em vez de sê-lo na natureza “espiritual” da alma. Afinal de contas, o corpo de carne é o templo do Espírito (1 Cor. 6:9), um membro de Cristo (1 Cor. 6:15), e um meio de glorificar a Deus (1 Cor. 6:20). A razão por que a carne-sarx representa a natureza humana caída e pecaminosa é que ela representa a fragilidade humana que pode tornar-se um instrumento do pecado.
       O sentido de “carne”, com o significado de “mundo”, é ambivalente em Paulo como na Bíblia em geral. A carne e o mundo, como criados por Deus para o apropriado desfrute da humanidade, são bons (Gên. 1:18, 21, 25, 31). Mas quando a carne e o mundo negam sua condição de coisas criadas por Deus contra Ele se rebelam reivindicando independência e auto-suficiência, então tornam-se maus.É nesse sentido que carne (natureza carnal) e mundanismo são sinônimos de pecaminosidade. Poderíamos dizer que “a carne-sarx” é neutra quando se refere à vida de uma pessoa no mundo, mas designa a pecaminosidade quando se descreve uma pessoa vivendo para o mundo e permitindo que o mundo governe toda a sua vida e conduta.
       É evidente, portanto, que a antítese entre “a carne” e “o Espírito” nada tem a ver com o dualismo corpo-alma. A carne por si mesma não representa a parte da natureza humana (o corpo) que se alega ser má, e o espírito não representa a parte da natureza humana que supostamente é boa (a alma). Quando empregadas numa forma negativa, “a carne” significa o tipo de pessoa em quem a vida inteira, tanto física quanto psíquica, está fora do rumo, centralizada sobre o eu, antes que sobre Deus. Semelhantemente, “o espírito” representa não meramente a parte espiritual da natureza humana, mas o tipo de pessoa em quem a vida integral, tanto física quanto psíquica, é dirigida a Deus antes que ao eu. O contraste entre “carne” e “espírito” é ético, não ontológico.
       É lamentável que muitos tenham entendido errado a Paulo neste ponto. A razão para isto é a falha em entender que para Paulo, e para a Bíblia como um todo, o que corrompe uma pessoa não é o corpo ou a carne, mas o pecado. A carne pode tornar-se um instrumento do pecado, e como tal afeta o corpo e a alma, tal como sua contrapartida, o Espírito, transforma o corpo e a alma.37  “O inimigo derradeiro do Espírito de Deus não é a carne, mas o pecado, do qual a carne se tornou o instrumento fraco e corrupto”.38

       Conclusão. Nosso estudo do emprego neotestamentário do termo “espírito-pneuma” revelou que o espírito, à semelhança da alma, não é um componente espiritual independente da natureza humana que opera à parte do corpo. Pelo contrário, o espírito é o princípio de vida que anima o corpo físico e regenera a pessoa integral.
       Descobrimos que o significado e função do Espírito expandem-se com a vinda de Cristo, que é identificado com o Espírito na obra da salvação. O significado do espírito-pneuma como um princípio de vida é expandido para incluir o novo princípio de vida de regeneração moral, tornado possível mediante a redenção de Cristo. O Espírito sustém tanto os aspectos da vida física quanto moral-espiritual.
       A transformação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plenamente no Novo Testamento do que no Velho Testamento. João e Paulo descrevem este processo com duas metáforas diferentes, contudo complementares. João concebe a transformação moral interior como renascimento; Paulo, como nova criação.
       O “Espírito-pneuma” é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo porque serve para mostrar que a salvação é exclusivamente um dom divino de graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2), e não a posse natural de uma alma imortal. Em parte alguma o Novo Testamento identifica o Espírito comunicador de vida com uma alma imaterial, imortal, capaz de separar-se do corpo.
       A função do Espírito não é suster uma alma imortal, espiritual, mas suster tanto a vida física quanto espiritual. Tanto a criação quanto a recriação, nascimento e renascimento, são ações do Espírito, porque, como Jesus explicou, “é o Espírito que dá vida” (João 6:63).
       A antítese paulina entre “a carne” e “o Espírito” nada tem a ver com o dualismo corpo-alma. Os dois representam, não partes separadas e opostas da natureza humana, mas duas orientações éticas diferentes de uma pessoa: viver uma vida centralizada no eu versus viver uma vida centralizada em Deus. Em suma, podemos dizer que o espírito, à semelhança da alma, descreve, não uma entidade separada da natureza humana, mas um aspecto da totalidade dessa natureza.


PARTE III: A NATUREZA HUMANA COMO CORPO

       O sentido de corpo-soma ou de carne-sarx no Novo Testamento é semelhante às palavras correspondentes do Velho Testamento (corpo-geviyyah e carne-bashar), examinadas no capítulo anterior. Em seu emprego literal, o termo “corpo” descreve a realidade concreta da vida humana que consiste de carne e sangue. No Novo Testamento, contudo, “corpo-soma” é empregado maiormente num sentido figurado para denotar a pessoa como um todo (Rom. 6:12; Heb. 10:5), a natureza humana corrupta (Rom. 6:12; 8:11; 2 Cor. 4:11), a Igreja como o corpo de Cristo (Efé. 1:23; Col. 1:24), o corpo ressurreto dos remidos (1 Cor. 15:44), e a presença espiritual de Cristo simbolizada pelo pão e vinho (1 Cor. 11:27). Para o propósito de nossa investigação, focalizamos primariamente na perspectiva neotestamentária do corpo humano em relação à pessoa total.

       Cristo e o Corpo Humano. Para apreciar a consideração positiva do Novo Testamento do corpo humano, precisamos refletir sobre sua doutrina central da encarnação. Por exemplo, o evangelho de João anuncia no início que o eterno Filho de Deus “se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14). A própria idéia de que o eterno Filho de Deus entrou no tempo e espaço humanos e assumiu uma natureza humana plena, incluindo um corpo, era incompreensível para a mente grega. De fato, o gnosticismo, um influente movimento sectário cristão, influenciado pelo dualismo grego, rejeitava abertamente a encarnação de Cristo. Isso ilustra vigorosamente a diferença entre a visão bíblica holística da natureza humana, que dá valor ao corpo, e a visão dualística grega, que considera o corpo como a prisão da alma a ser descartada com a morte.
       Qualquer pessoa que aceite plenamente a doutrina neotestamentária da encarnação nunca pode acusar os escritores do Novo Testamento de denegrir o corpo humano ou a ordem física. O fato de que o divino Filho de Deus assumiu um corpo humano a fim de viver sobre a Terra comunica dignidade e importância ao corpo e a todo o reino físico.
       É também significativo observar que o mesmo Verbo eterno mediante o qual tudo o “que foi feito se fez” (João 1:3) por ocasião da criação veio ao mundo para redimir e restaurar não só a “alma”, mas o homem integral e o mundo inteiro. “Este é o significado da estranha doutrina de ressurreição do corpo, a qual, mais do que qualquer outra coisa, horrorizava e causava repugnância no mundo grego. Esta doutrina servia para realçar, na forma mais vigorosa possível, o ponto de vista do Novo Testamento de que não é alguma parte do homem (sua ‘alma’ racional) que se destina à eternidade, mas a pessoa integral que tem o seu lugar no propósito de Deus”.39
       A doutrina da ressurreição do corpo, que é examinada no capítulo 7, ensina que nossa natureza física e o mundo material que desempenham um papel vital em moldar nossa existência terrena, têm significação eterna no divino esquema de coisas. Isto nos ensina, como Ronald Hall acertadamente diz, que “mesmo no além-túmulo, o corpo não é um mero adorno do espírito, mas um elemento essencial no ser de uma pessoa. É dificil entender por que Paulo centralizava a fé na crença da ressurreição se ele tivesse outra idéia. Se ele pensasse, por exemplo, que a salvação tivesse que ver somente com uma alma desincorporada liberta do corpo, certamente não teria insistido tanto no tema da ressurreição do corpo; ele teria se contentado com a noção grega de uma alma imortal”.40
       A crença na ressurreição do corpo está firmada na ressurreição corporal de Cristo. “Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1 Cor. 15:17, 18). A encarnação de Cristo num corpo humano e a ressurreição num corpo glorificado (João 20:27) nos fala que o corpo tem significação eterna no propósito divino para este mundo. Diz-nos que o corpo não é uma prisão temporária ou campo de testes para as “almas” destinadas à aniquilação final. Antes, fala-nos que o corpo é nossa personalidade total que Deus se compromete a preservar e trazer de volta à vida no dia da ressurreição.
       A ressurreição do corpo é necessária para a vida no mundo por vir em vista de que o Novo Testamento nunca aceitou a crença na imortalidade da alma. A vida sem o corpo é inconcebível. Uma vez que o corpo é nossa existência humana concreta, sua ressurreição é indispensável para assegurar uma personalidade e vida plenas na nova terra.

       A Fé Cristã é “Materialística”. Nestas alturas vale a pena lembrar que a esperança do Velho Testamento para o mundo por vir é extremamente “materialística”. Enquanto os gregos estavam na expectativa de um escape final da alma desta terra para uma região etérea, os crentes do Velho Testamento estavam aguardando o estabelencimento do reino de Deus sobre este planeta (Dan. 2:44; 7:27). O reino messiânico trará a consumação da história humana sobre a Terra de acordo com o propósito criativo de Deus.
       A mesma crença é proeminente no Novo Testamento. Cristo desceu a este mundo para redimir tanto o homem quanto a criação sub-humana (Rom. 8:22, 23) e Ele retornará à Terra para estabelecer uma nova ordem física. “Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe” (Apo. 21:1). A terra inteira, inclusive o corpo humano, não é aniquilada, mas aperfeiçoada. “E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram” (Apo. 21:4). “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo” (Apo. 21:2).
       A renovação final da Terra é o correspondente cosmológico da doutrina da ressurreição do corpo. Assim como o crente individual ao final não escapará do corpo, mas receberá um corpo imperecível (1 Cor. 15:53), também os remidos não serão arrebatados para sempre deste planeta para o céu, mas serão estabelecidos sobre a Terra, restaurada a sua perfeição original como o lugar do reino glorioso e eterno de Deus.
       “Não há sugestão aqui”,  escreve D. R. G. Owen, “de ‘almas’ desincorporadas penosamente buscando o seu caminho rumo aos céus no alto, para ali existirem por toda a eternidade como puros ‘espíritos’. Bem o contrário é o que temos: Deus desce até o homem; o Verbo tornou-se carne; o céu desce à Terra; a cidade santa desce a partir de Deus no céu. . . . Assim, ao final da Bíblia, em sua doutrina das últimas coisas, como no princípio, em sua doutrina das primeiras coisas, o significado eterno de todo o reino físico é inegavelmente assegurado”.41
       Owen conclui fazendo notar que “as implicações deste materialismo bíblico para a antropologia bíblica--implicações sublinhadas pela doutrina da ressurreição do corpo em oposição à doutrina da imortalidade da alma separada--são as seguintes: primeiro, o ‘corpo’ é um aspecto essencial da personalidade humana e não uma parte destacável que finalmente será posta à parte; e, em segundo lugar, a pessoa integral, e não uma ‘alma’ desincorporada, destina-se à vida eterna”.42

       O Corpo Como a Pessoa Integral. No Novo Testamento, o corpo-soma não é algo exterior que se apega ao eu real de uma pessoa (a alma), mas denota a pessoa inteira. Isso leva Rudolf Bultmann a afirmar: “O homem não tem um soma [corpo]”.43  Conquanto haja umas poucas passagens em que o corpo ou a carne sejam contrastadas com a alma ou o espírito, tais contrastes não têm o fito de dividir a natureza humana em duas entidades diferentes. Antes, descrevem diferentes aspectos da pessoa total.
       O corpo-soma pode denotar a pessoa inteira. Por exemplo, quando Paulo diz: “ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado” (1 Cor. 13:3), ele obviamente está se referindo a sua pessoa integral. Semelhantemente, quando diz, “esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1 Cor. 9:27) ele quer dizer que está se colocando sob controle. O oferecimento do corpo como um sacrifício vivo (Rom. 12:1) significa a submissão do próprio eu a Deus. O desejo de Paulo de que “em nada serei envergonhado; antes, com toda a ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte” (Fil. 1:20) significa honrar a Cristo na totalidade de seu corpo. Em referências como essas, o corpo representa a pessoa integral como responsável por certos atos.
       A existência corpórea é o modo normal e apropriado de ser. Destarte, o corpo é um elemento essencial da existência humana. A vida do corpo não é contrastada com a vida da alma ou do espírito, como se o corpo fosse um obstáculo à plena realização da vida superior da alma ou espírito. O corpo pode tornar-se um obstáculo quando é usado como um instrumento do pecado, mas não é um impedimento em si mesmo. O corpo não é necessariamente mau, porque é parte da boa criação de Deus. Isto é também indicado pelo fato de que nenhum mal esteve presente em Cristo, conquanto Ele fosse participante de nosso corpo humano.

       O Corpo Como Instrumento de Pecado. Sendo corruptível e mortal (Rom. 6:12; 8:11; 2 Cor. 4:11), o corpo pode tornar-se um instrumento do pecado. Isso explica por que Paulo fala do “corpo desta morte”. “Desventurado homem que sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (Rom. 7:24). Aqui o quadro mental do apóstolo não é físico, mas ético. A morte é o domínio do pecado revelado na vida física da qual uma pessoa é livrada mediante a regeneração, pela fé em Cristo. Uma vez que o pecado pode reinar em nosso corpo mortal (Rom. 6:12), o corpo visto como instrumento do pecado pode ser chamado de “corpo do pecado” (Rom. 6:6) e “corpo desta morte” (Rom. 7:24). Assim, é necessário que um crente mortifique “os feitos do corpo” (Rom. 8:13) por viver de acordo com o Espírito. Isto não significa mortificação do corpo em si, mas a renúncia de atos pecaminosos.
       Uma vez que o corpo se torna um instrumento de pecado, o alvo da vida cristã é exercer domínio próprio sobre ele para impedi-lo de dominar a vida espiritual de alguém. Paulo estabelece esta verdade claramente em 1 Coríntios 9 onde compara a si mesmo com um atleta que treina com rigorosos exercícios de domínio próprio para impedir que seu corpo tenha predomínio sobre sua vida espiritual. “Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado” (1 Cor. 9:27).
       O domínio próprio sobre o corpo é conseguido especialmente por consagrá-lo a Deus como um sacrifício vivo (Rom. 12:1). Isto é obtido, não mediante práticas ascéticas e mortificação do próprio corpo, mas por fazê-lo sensível  aos ditames da Palavra de Deus. O cristão reconhece que o seu corpo é a habitação do Espírito Santo (1 Cor. 6:19). Cultivar a presença do Espírito Santo no corpo de alguém significa fazer todos os nossos prazeres e atividades físicos subservientes a objetivos espirituais.

       Conclusão. O corpo no Novo Testamento denota a pessoa total, tanto literalmente, como na realidade concreta da existência humana, e figuradamente, na submissão da pessoa à influência do pecado ou do poder do Espírito Santo. O Novo Testamento vê o corpo como um aspecto essencial da pessoa inteira que não é destacável da alma, nem pode ser descartado.
O significado do corpo no Novo Testamento é reforçado pela encarnação de Cristo que tomou um corpo humano a fim cumprir Sua missão redentora sobre a Terra. A encarnação de Cristo  num corpo humano e Sua ressurreição num corpo glorificado (João 20:27) nos falam que o corpo tem significação eterna no propósito redentor e criativo de Deus. Isso é confirmado pela ressurreição do corpo, o que nos fala que mesmo na nova terra, o corpo será uma parte essencial da existência humana.
       Figuradamente, o corpo é empregado no Novo Testamento numa forma ambivalente. Por um lado, pode tornar-se um “corpo do pecado” (Rom. 6:6) e o “corpo desta morte” (Rom. 7:24), quando se torna um instrumento do pecado. Por outro lado, pode tornar-se o templo do Espírito Santo (1 Cor. 6:19) e o meio de glorificar a Deus (1 Cor. 6:20), quando se torna um instrumento no serviço de Cristo. A redenção significa, não a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo (a pessoa inteira) nesta vida presente e a ressurreição do corpo (a pessoa inteira) no mundo por vir.


PARTE IV: A NATUREZA HUMANA COMO CORAÇÃO

       O coração-kardia no Novo Testamento é empregado com a mesma ampla gama de sentidos que encontramos no Velho Testamento (leb e lebab). Não precisamos delongar-nos no estudo do significado e empregos do termo coração no Novo Testamento. Essencialmente, o coração-kardia representa a vida interior integral de uma pessoa em seus vários aspectos. Denota, como no caso de espírito, o centro emocional, intelectual e espiritual de uma pessoa. O fato de que o “coração” e o “espírito” são empregados numa maneira semelhante mostra novamente o ponto de vista holístico bíblico da natureza humana, onde uma parte da natureza humana pode ser empregada com referência à  pessoa integral.

       O Coração É a Sede das Emoções. Tanto as boas quanto as más emoções brotam do coração. O coração sente alegria (João 16:22; Atos 2:26; 14:17), temor (João 14:1), sofrimento (João 16:6; 2 Cor. 2:4), amor (2 Cor. 7:3; 6:11; Fil. 1:7), cupidez (Rom. 1:24), anseio (Rom. 10:1; Luc. 24:32), e desejo (Rom. 1:24; Mat. 5:28; Tia. 3:14). Paulo expressou o desejo de seu coração pela conversão de seus irmãos judeus (Rom. 10:1). Ele escreveu aos coríntios com “angústia de coração” (2 Cor. 2:4). Instou os coríntios a abrirem o coração para recebê-lo e a seus companheiros em amor (2 Cor. 7:2).
       O Coração é a Sede da Atividade Intelectual. Jesus disse que “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus” (Mar. 7:21) e “Raça de víboras, como podeis falar cousas boas, sendo maus? porque a boca fala do que está cheio o coração” (Mat. 12:34). Paulo exorta todo homem a dar liberalmente “como propôs em seu coração” (2 Cor. 9:7). Os “olhos do coração” devem ser iluminados (Efé. 1:8) para entender a esperança cristã.  As decisões têm sua origem no coração (Luc. 21:14; Atos 11:23).
       Às vezes é Deus Quem influencia a decisão dos corações humanos: “Porque em seus corações incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à uma e dêem a esta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus” (Apo. 17:17). Às vezes é o diabo quem o faz: “Durante a ceia, tendo já o diabo posto no coração de Judas Iscariotes, filho de Simão, que traísse a Jesus . . . ” (João 13:2). Outras vezes o coração é sinônimo de consciência: “Amados, se o coração não nos acusar, temos confiança diante de Deus” (1 João 3:21). Os gentios possuem uma lei, escrita em seus corações que os capacita a distinguirem entre o bem e o mal (Rom. 2:14, 15).

       O Coração Como Sede da Experiência Religiosa. Deus se comunica com uma pessoa no coração. Ele pesquisa o coração humano e o põe à prova (Luc. 16:15; Rom. 8:27; 1 Tes. 2:4). Deus escreve a Sua lei no coração humano (Rom. 2:15; 2 Cor. 3:2; Heb. 8:10). Ele abre o coração humano (Luc. 24:45; Atos 16:14). Ele resplandece em nossos corações para nos dar luz do conhecimento de Jesus Cristo (2 Cor. 4:6). A paz de Deus mantém nossos corações e mentes em Cristo (Fil. 4:7). O Espírito de Deus é derramado em nossos corações (Rom. 5:5; 2 Cor. 1:22; Gál. 4:6).
       Cristo habita o nosso coração e nele atua por meio da fé (Efé. 4: 17, 18). O coração cristão é purificado e santificado mediante a fé e o batismo (Atos 15:9; Heb. 10:22). O coração é purificado (Mat. 5:8) e fortalecido por Deus (1 Tes. 3:13). A paz de Cristo pode reinar no coração (Col. 3:15). O coração recebe as primícias do Espírito (2 Cor. 1:22).
       Virtudes cristãs são atribuídas ao coração. O amor é associado com o coração (2 Tes. 3:5; 1 Ped. 1:22). A obediência se liga ao coração (Rom. 6:17; Col. 3:22). O perdão deriva do coração (Mat. 18:35). A gratidão reside no coração (Col. 3:16). A paz de Deus habita no coração (Fil. 4:7). Acima de tudo, o amor por Deus e pelo semelhante procede do coração (Mar. 12:30, 31; Luc. 10:27; Mat. 22:37-39).
       Os exemplos de textos há pouco citados indicam claramente que a palavra “coração” é empregada para descrever a vida interior da pessoa total. Isso leva Karl Barth a concluir que “o coração não é meramente uma parte mas a realidade do homem, tanto integralmente da alma, quanto integralmente do corpo”.
44 O fato de que o coração representa a vida interior total de uma pessoa em grande parte como também se dá com o espírito, revela novamente a perspectiva holística bíblica da natureza humana.
       A visão dualística que atribui as funções morais e espirituais da natureza humana à alma é desacreditada pelo fato de que tais funções são igualmente atribuídas ao coração e ao espírito. Isto é possível porque, como vimos, na Bíblia a natureza é uma unidade indissolúvel e não uma composição de diferentes “peças”. A visão holística bíblica da natureza humana nega a possibilidade de que a alma exista e atue como uma entidade distinta, imaterial à parte do corpo.

       Apoio de Eruditos Para o Ponto de Vista Holístico. Como um breve apêndice a nossa pesquisa do ponto de vista bíblico da natureza humana, cito, como exemplos, alguns dos numerosos eruditos de diferentes persuasões que apóiam o ponto de vista holístico bíblico, que nega a crença na imortalidade da alma.45
       Em vários de seus livros, William Temple, Arcebispo de Canterbury, afirma o ponto de vista holístico bíblico da natureza humana e declara ser “antibíblica a noção da indestrutibilidade natural da alma individual”.46 Ele escreveu: “O homem não é imortal por natureza ou direito; mas ele é capaz da imortalidade e lhe é oferecida a ressurreição dos mortos e a vida eterna se ele desejar recebê-la de Deus e nos termos de Deus”.47
       Na “Conferência Ingersoll Sobre a Imortalidade do Homem”, apresentada na Capela Andover da Universidade Harvard, o teólogo suíço Oscar Cullmann acentuou a diferença fundamental entre a doutrina cristã da ressurreição e o conceito grego da imortalidade da alma. Disse ele: “A alma não é imortal. Deve haver uma ressurreição para ambos [corpo e alma]; pois desde a Queda o homem inteiro é ‘semeado corruptível’”.48 Essa  famosa conferência, que mais tarde foi publicada em forma de livro,  sob o título Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?, [Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?] provocou violenta hostilidade de parte de alguns que acusaram Cullmann de ser um “monstro que se deleita em causar angústia espiritual”.49 Um autor declarou: “O povo francês, morrendo por falta do Pão da Vida, em vez disso teve oferecido pedras, se não serpentes”.50 Tais reações violentas exemplificam quão difícil é para as pessoas reexaminarem crenças que há muito adotaram.
       Em seu livro Basic Christian Teachings [Ensinos Cristãos Básicos], o teólogo luterano Martin Heinechen rejeita como “falso dualismo” a noção de que por ocasião da criação “Deus fez uma alma, que é a pessoa real, e então deu a essa alma uma lar temporário num corpo, feito de pó da terra. . . . O homem deve ser considerado uma unidade. . . . O dualismo cristão não tem que ver com alma e corpo, mente eterna e coisas que passam, mas o dualismo de Criador e criatura. O homem é uma pessoa, um ser integral, um centro de responsabilidade, apresentando-se diante do Criador e Juiz. Ele não tem vida ou imortalidade dentro em si mesmo”.51
       No The Pocket Commentary of the Bible [Comentário da Bíblia de Bolso], Basil F. C. Atkinson, bibliotecário da Universidade Cambridge, escreve, com relação a Gênesis 2:7: “Às vezes se têm pensado que a concessão do princípio de vida, como nos é apresentado neste verso, implica em imortalidade do espírito ou alma. Têm-se dito que ser feito à imagem de Deus envolve imortalidade. A Bíblia nunca diz isso. Se envolvesse imortalidade, por que não envolve igualmente onisciência e onipotência, ou qualquer outra qualidade ou atributo do Infinito? . . . . Ao longo da Bíblia o homem, é concebido como feito de pó e cinzas, uma criatura física, a quem o princípio de vida é concedido por empréstimo. Os pensadores gregos tendiam a pensar no homem como sendo uma alma imortal aprisionada num corpo. A ênfase é o oposto à da Bíblia, mas, encontrou um vasto lugar no pensamento cristão”.52
       Alguns eruditos católicos também reconhecem que o conceito tradicional da imortalidade natural da alma não é um conceito bíblico. Claude Tresmontant, um erudito francês católico dominicano, contrasta a “ressurreição” bíblica da pessoa integral com o ponto de vista dualístico tradicional. Escreve ele:  “Mas o ensino judaico-cristão sobre a ressurreição é uma questão bem diferente. Não significa que uma parte do homem--sua alma--será liberada por ter a outra parte descartada--seu corpo material; o ensino bíblico deixa implícito que o homem total é salvo”.53
       Em The Biblical Meaning of Man [O Sentido Bíblico do Homem], Dom Wulstan Mork, que é também um erudito católico dominicano, desafia a posição dualística tradicional da natureza humana e insta o leitor a recuperar a perspectiva holística bíblica. Escreve ele: “O homem bíblico, portanto o homem como revelado na Bíblia, é uma unidade de carne, alma, e espírito, não uma tricotomia, nem uma dicotomia de corpo e alma”.  Ele prossegue fazendo observar que a Bíblia vê o homem “como um todo, um ponto de vista salutar para descrever um viver integral e balanceado, radicalmente relacionado com Deus, a humanidade e toda a criação. Precisamos dessa perspectiva hoje, para contrafazer uma atitude platônica ainda na espreita, e corrigir uma aceitação da situação humana por demais natural e secularizada”.
54 Mork acredita que uma recuperação da perspectiva holística bíblica da natureza humana contribuirá para uma “atitude mais salutar para com a pessoa humana, e, de fato, para com a questão em geral”.55
       Reinhold Niebuhr, renomado teólogo americano e professor por longo tempo no Seminário Teológico Union, contrasta o ponto de vista holístico bíblico da natureza humana com o ponto de vista dualístico clássico. Ele conclui: “Todas as provas plausíveis e não-plausíveis para a imortalidade da alma são esforços da parte da mente humana para compreender e controlar a consumação da vida. Todos tentam provar de um modo ou de outro que um elemento eterno na natureza do homem é digno e capaz de sobrevivência além da morte. Mas toda técnica mística ou racional que busca criar o elemento eterno tende a negar o significado histórico da unidade de corpo e alma; e com isso o sentido de todo o processo histórico com suas infinitas elaborações dessa unidade’”.56
       Em seu livro The Christian Hope [A Esperança Cristã], o teólogo luterano T. A. Kantonen observa que “tem sido característica do pensamento ocidental desde Platão distinguir radicalmente entre a alma e o corpo. O corpo supostamente é composto de matéria, enquanto a alma o é de espírito. O corpo é uma prisão da qual a alma é libertada por ocasião da morte para levar avante sua primeira existência não-física. Daí o tema da vida após a morte ter sido uma questão de demonstrar a imortalidade, a capacidade desafiadora da morte da alma. O corpo é de pouca conseqüência. Esse modo de pensar é inteiramente estranho à Bíblia. Em perfeita harmonia com a Escritura e rejeitando decididamente a visão grega, o Credo dos Apóstolos não diz, ‘Creio na Imortalidade da Alma’, mas ‘Creio na ressurreição do corpo’”.57
       Em seu impressionante estudo sobre o ponto de vista bíblico da natureza humana, intitulado Body and Soul [Corpo e Alma], R. G. Owen, ex-reitor do Trinity College, da Universidade de Toronto, oferece uma penetrante análise do contraste entre o ponto de vista dualístico grego e a posição holítica bíblica da natureza humana. Owens descobre que o homem na Bíblia é um “todo psico-somático unificado” e que “não pode haver parte destacável do homem que sobrevive à morte física”.58 “A Bíblia”, ele escreve, “presume que a natureza humana é uma unidade; no Novo Testamento ensina que o destino final do homem envolve a  ‘ressurreição do homem’”.59  Owens propõe que “a velha doutrina da imortalidade da alma separada deve agora ser tranqüilamente posta no lugar dos espíritos que partiram”.60
       Emil Brunner, bem conhecido teólogo suíço, acha o ponto de vista dualístico da natureza humana irreconciliável com a perspectiva holística bíblica. Ele escreve: “Em alguma parte da fé cristã deve ter havido alguma abertura pela qual essa doutrina estranha pôde penetrar. Certamente, segundo a perspectiva bíblica, somente Deus é que possui imortalidade. A opinião de que nós homens somos imortais em razão de nossa alma ser de uma essência indestrutível, em vista de ser divina, é, de uma vez por todas, irreconciliável com a visão bíblica de Deus e do homem”.61
       Brunner discute várias implicações negativas dessa concepção dualística da natureza humana. Primeiramente, ele assinala que o efeito do dualismo “não é meramente tornar a morte inócua, mas também tirar do mal o seu aguilhão. Assim como a morte afeta somente a parte inferior do homem, igualmente se dá isso com o mal. O último consiste apenas no sensual e impulsivo. Eu próprio não sou verdadeiramente responsável pelo mal, somente minha parte inferior, que é como se estivesse ligada a meu melhor, mais elevado e verdadeiro ser. O mal, assim, não é ato do espírito, nem rebeldia do eu contra o Criador, mas meramente uma natureza sensual ou impulsiva que não foi amansada pela mente. Em suma, o mal é a ausência de mente, não o pecado”.62
       Uma segunda conclusão a que se chega é que “o homem em seu ser espiritual e mais elevado é divino, não tem caráter de ser criado. Deus não é seu criador, Deus é o todo de que o espírito humano constitui apenas uma parte. O homem é um participante do divino no sentido mais direto e literal. Daí, uma vez que essa forma de retirar do mal o seu aguilhão corre necessariamente paralelo com deixar a morte inócua mediante o ensino a respeito da imortalidade, esta solução ao problema da morte revela-se em irreconciliável oposição com  o pensamento cristão”.63
       Em seu livro I Believe in the Second Advent [Creio no Segundo Advento], Stephen H. Travis, um respeitado teólogo britânico, reconhece que se fosse pressionado a escolher entre “punição eterna” e “imortalidade condicional”, ele optaria pela última. A primeira razão que ele dá é que a “imortalidade da alma é uma doutrina não-bíblica derivada da filosofia grega. No ensino bíblico o homem é ‘condicionalmente imortal’--isto é, ele tem a possibilidade de tornar-se imortal se receber a ressurreição ou imortalidade como um dom de Deus. Isso deixaria implícito que Deus concede a ressurreição àqueles que O amam, mas os que a Ele resistem perdem a existência”.64
       Travis faz notar que “o velho conceito da alma, que costumava ser a salvaguarda da passagem da pessoa desta vida para a próxima, tem sido em grande medida abandonada no pensamento moderno. A natureza do homem é tida como uma unidade; ele não consiste de duas partes, um corpo físico que morre e uma alma que prossegue vivendo para sempre. Sua ‘alma’ ou ‘eu’ ou ‘personalidade’ é simplesmente uma função do cérebro. Destarte, quando o cérebro morre, a pessoa morre, e nada é deixado para adentrar-se noutra vida”.65
       Bruce Reichenbach, filósofo americano, examina a natureza humana em seu livro Is Man the Phoenix? [Seria o Homem Fénix?]. Ele conclui que “a doutrina de que o homem como pessoa [alma] não morre apresenta dificuldades particulares para o dualista cristão. Um fato é que isso aparentemente contraria os ensinos da Escritura. . . . [Ele cita vários textos]. Cada uma destas e de numerosas outras passagens indicam que cada um de nós, como pessoa, deve morrer. Não há indício de que a única coisa sobre que se fala a respeito é a destruição do organismo físico, e que a pessoa real, a alma, não morre mas prossegue vivendo”.66
       Donald Bloeseh, proeminente erudito evangélico, dá apoio à mesma conclusão, dizendo: “Não existe imortalidade inerente da alma. A pessoa que morre, inclusive aquele que morre em Cristo, defronta a morte tanto do corpo quanto da alma”.67 Anthony Hoekema, teólogo calvinista, concorda: “Não podemos apontar a nenhuma qualidade inerente no homem ou a qualquer aspecto do homem que o torne indestrustível”.68 F. F. Bruce, respeitado erudito britânico, especialista em Novo Testamento, adverte que “nosso pensamento tradicional sobre uma ‘alma que nunca morre’, que tanto deve à herança greco-romana, torna-nos difícil apreciar o ponto de vista [holístico] de Paulo”.69
       Murray Harris, erudito bíblico americano, conclui seu artigo sobre “Ressurreição e Imortalidade” declarando: “O homem não é imortal porque possui ou é uma alma. Ele se torna imortal porque Deus o transforma erguendo-o dentre os mortos”.70 Ele explica que enquanto o pensamento platônico tornou a imortalidade “um atributo inalienável da alma, . . . a Bíblia não contém nenhuma definição da constituição da alma que implique sua destrutibilidade”.71
       Em sua dissertação doutoral “O Sheol no Velho Testamento”, Ralph Walter Doermann conclui sua análise do ponto de vista veterotestamentário da natureza humana por dizer: “É evidente da perspectiva hebraica da unidade psíco-somática do homem que havia pouco espaço para a crença na ‘imortalidade da alma’. Ou a pessoa completa vivia ou a pessoa inteira sucumbia à morte. Não havia existência independente para o ruach [espírito] ou para o nephesh [alma] à parte do corpo. Com a morte do corpo o ruach [espírito] impessoal ‘retorna para Deus que o deu’ (Ecl. 12:7) e a nephesh [alma] é destruída, conquanto esteja ainda presente, num sentido muito débil, nos ossos e no sangue”.72
       H. Dooyeweerd, filósofo holandês calvinista, critica agudamente a visão dualística da natureza humana. Ele rejeita tal perspectiva não só porque “a idéia de uma substância centralizada na razão humana (ou seja, a alma) está em conflito com a confissão de corrupção radical da natureza humana, mas também porque a separabilidade da alma do corpo suscita vários problemas”. Um dos problemas que ele menciona é a impossibilidade para a “alma” levar avante atividades, uma vez esteja separada do corpo, porque as funções psíquicas estão indissoluvelmente ligadas ao relacionamento temporal total e às funções do corpo.73

       Conclusão. Chegamos ao final de nossa pesquisa de quatro palavras proeminentes empregadas no Velho Testamento para descrever a natureza humana, quais sejam, alma, espírito, corpo e coração. Descobrimos que o Novo Testamento expande o sentido veterotestamentário desses termos à luz dos ensinos e do ministério redentor de Cristo.
No Novo Testamento, a “alma-psychê” não é uma entidade imaterial e imortal que sobrevive à morte do corpo, mas a pessoa total como um corpo vivo, com sua personalidade, apetites, emoções e habilidades de raciocínio. A alma-psychê denota a vida física, emocional e espiritual. Cristo ampliou o sentido de alma-psychê para incluir o dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos a sacrificar sua vida terrena por Ele, mas nunca sugeriu que a alma seja uma entidade imaterial, imortal. Pelo contrário, Jesus ensinava que Deus pode destruir a alma, tanto quanto o corpo (Mat. 10:28) dos pecadores impenitentes.
Paulo nunca emprega o termo “alma-psychê” para denotar a vida que sobrevive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nossa natureza física (psychikon), que se sujeita à lei do pecado e da morte (1 Cor. 15:44). Para assegurar que seus conversos gentios entendiam que nada há de imortal na natureza humana por si mesma, Paulo empregou o termo “espírito-pneuma” para descrever a nova vida em Cristo, a qual o crente recebe integralmente como um dom do Espírito de Deus tanto agora quanto na ressurreição.
       O “espírito-pneuma”, como a alma, não é um componente independente, espiritual da natureza humana que atua à parte do corpo, mas o princípio de vida que anima o corpo físico e regenera a pessoa inteira. Descobrimos que o sentido e função do Espírito são expandidos com a vinda de Cristo, que é identificado com o Espírito na obra da salvação. O significado do espírito-pneuma como princípio de vida é ampliado para incluir o princípio de nova vida de regeneração moral tornado possível mediante a redenção de Cristo.
       O Espírito sustém tanto os aspectos físicos quanto morais da vida. A transformação moral realizada pelo Espírito Santo é descrita mais plenamente no Novo Testamento do que no Velho Testamento. João e Paulo descrevem este processo com duas metáforas diferentes, contudo complementares: renascimento e nova criação.
       O Espírito-pneuma é a palavra mais importante do vocabulário de Paulo sobre este tópico porque serve para demonstrar que a salvação é exclusivamente um dom divino de graça mediado pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2) e não uma posse natural de uma alma imortal. Em parte alguma o Novo Testamento identifica o Espírito transmissor de vida com uma alma imaterial, imortal capaz de desligar-se do corpo.
       A função do Espírito não é suster uma alma espiritual, imortal, mas apoiar tanto nossa vida física quanto espiritual. Tanto a criação quanto a recriação, o nascimento e o renascimento, são atos do Espírito porque Jesus explicou: “o Espírito é o que vivifica” (João 6:63). O espírito, à semelhança da alma, descreve, não uma entidade separada da natureza humana, mas a pessoa integral como sustida e transformada pelo Espírito de Deus.
       O corpo no Novo Testamento denota a pessoa inteira, tanto literalmente, na realidade concreta da existência humana, quanto figurativamente, na submissão da pessoa à influência do pecado ou ao poder do Espírito Santo. O sentido do corpo humano no Novo Testamento é reforçado pela encarnação de Cristo num corpo humano e por Sua ressurreição num corpo glorificado (João 20:27).
       O corpo tem significação eterna no propósito criativo e redentor de Deus. A redenção significa, não a remoção da alma do corpo, mas a renovação do corpo como a pessoa integral nesta vida presente, e a ressurreição do corpo como a pessoa integral no mundo por vir. “O corpo não é o túmulo para a alma, mas um templo do Espírito Santo, o homem não é completo à parte do corpo”.74 Assim, mesmo na nova terra, o corpo será parte essencial da existência humana porque os remidos existirão, não como almas desincorporadas, mas como pessoas ressuscitadas em corpo.
       O coração no Novo Testamento representa a vida interior integral de uma pessoa. Denota, a exemplo do Espírito, as funções emocionais, intelectuais e espirituais de alguém. O fato de que tais funções são igualmente atribuíveis ao coração e ao espírito revela que o Novo Testamento, à semelhança do Velho, considera a natureza humana como uma unidade indissolúvel, não como uma composição de diferentes “peças”.
       Sumariando nossa pesquisa da perspectiva da natureza humana tanto no Velho quanto no Novo Testamento, podemos dizer que a Bíblia é coerente ao ensinar que a natureza humana é uma unidade indissolúvel, onde o corpo, alma e espírito representam diferentes aspectos da mesma pessoa, e não diferentes substâncias ou entidades atuando independentemente. Esta perspectiva holística humana remove a base para a crença na sobrevivência da alma por ocasião da morte do corpo.
       O ponto de vista holístico da natureza humana que encontramos na Bíblia levanta muitas indagações importantes: o que acontece quando uma pessoa morre? Acaso a pessoa completa, corpo, alma, e espírito, perece por ocasião da morte de modo que nada sobrevive? Se assim é, por que a Bíblia fala da ressurreição dos mortos? Qual é o estado dos mortos entre a morte e a ressurreição, um período geralmente conhecido como estado intermediário? Qual é a natureza do corpo ressurreto? Será semelhante ou diferente do corpo presente? Estas são algumas das perguntas que devemos responder nos capítulos que se seguem.

Notas do Capítulo 3

 1.  Uma pesquisa bastante abrangente da literatura intertestamentária que trata com a natureza e destino humanos acha-se  em H. C. C. Cavalin, Life after Death: Paul’s Argument for the Resurrection of the Dead in I Corinthians; Part 1: An Inquiry into the Jewish Background (Lund: Holland 1974). Outro estudo erudito é o de George Nickelsburg Jr. em Resurrection, Immortality, and Eternal Life in Inter-testamentary Judaism (Cambridge, 1972).
  2. 2 Baruch 30, citado de R. H. Charles, The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament in English with  Introductory and Critical Explanatory Notes to the Several Books (Oxford, 1913), p. 498.
  3.  Comentando sobre este texto, R. H. Charles escreveu: “Esta imortalidade condicional do homem aparece também em 1 Enoque 69:l 1; Sabedoria 1:13, 14; 2 Enoque 30:16, 17; 4 Esdras 3:7” (Ibid., p. 477).
  4. Ibid., p. 49. De acordo com R. H. Charles, “Este é o exemplo atestado mais antigo desta expectativa nos últimos dois séculos AC”. (Ibid., p. 10).
  5. Ibid., p. 538.
  6. Ver 4 Macabeus 10:15; 13:17; 18:18; 18:23.
  7. Ver 4 Macabeus 9:8,32; 10:11,15; 12:19; 13:15.
  8. H. Wheeler Robinson, The Christian Doctrine of Man (Edimburgo, 1952), p. 74.
  9. Basil F. C. Atkinson, Life and Immortality (Taunton, Inglaterra, S. D.), p. 12.
10. John A. T. Robinson, The Body: A Study of Pauline Theology (Londres, 1966), p. 23.
11. Edward Schweizer, “Psyche,” TheologicalDictionary of the New Testament, ed., Gerhard Friedrich, (Grand Rapids, 1974), Vol. 9, p. 640.
12. O dado numérico é fornecido por  Basil F. C. Atkinson (nota 9), p. 14.
13. Edward Schweizer (nota 11), p. 644. (Ver também pág. 653).
14. Robert A. Morey, Death and the Afterlife (Mineápolis, 1984), p. 152.
15. Oscar Cullmann, “Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?” in Immortality and Resurrection. Death in the Western World: Two Conflicting Currents of Thought, ed. Krister Stendahl (Nova York, 1968), pp. 36-37.
16. Edward William Fudge, The Fire That Consumes (Houston, l989), p. 173.
17. Ibid., p. 177.
18. Edward Schweizer (nota 11), p. 646.
19. O dado numérico é fornecido para Edward Sehweizer (nota 11), p. 648, n. 188.
20. Este ponto de vista é expresso por Edward Schweizer (nota 11), p. 650. Semelhantemente, Tony Hoff observa que  “Paulo nunca emprega psychê para a vida que sobrevive à morte [porque] ele estava ciente da possibilidade dessa exata distorção durante esse tempo. Ele sabia que a presença de uma tradição platônica iria confundir particularmente os conversos gentílicos” (“Nephesh and the Fulfillment It Receives as Psyche” in Toward a Biblical View of Man: Some Readings, ed. Arnold H. De Graff e James H. Olthuis [Toronto, 1978], p. 114).
21. John Calvin, Institutes of the Christian Religion, trad. F. L. Battles (Filadélfia, 1960), Vol. 1, p. 192.
22. Ibid.
23. H. Wheeler Robinson (nota 8), p. 122.
24. Catechism of the Catholic Church (Roma, 1994), pp. 93-94.
25. Ibid., p. 93.
26. Edward Schweizer (nota 11), p. 651.
27. W. White, “Spirit,” The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible, ed. Merrill C. Tenney (Grand Rapids, 1978), Vol. 5, p. 505.
28. David W. Stacey, The Pauline View of Man (Londres, 1956), p. 135
29. Claude Tresmontant, A Study of Hebrew Thought (Nova York, 1960), p. 107.
30. Henry Barclay Swete, The Holy Spirit in the New Testament (Londres, 1910), p. 342.
31. Wheeler Robinson (nota 8), p. 109.
32. Ver por exemplo, Robert A. Morey (nota 14), p. 62; W. Morgan, The Religion and Theology of Paul (Nova York, 1917), pp. 17ss. Uma apresentação clássica da interpretação dualística de carne e Espírito se encontra em O. Pfleiderer, Primitive Christianity (Nova York, 1906), Vol. 1, pp. 280ss. Ver também a dissertação de Mary E. White, “The Greek and Roman Contribution,” in The Heritage of Western Culture, ed. R. C. Chalmers (Toronto, 1952), pp. 19-21. Ela argumenta que o contraste entre carne e espírito deriva do dualismo grego e “tem resultado em muitos séculos de mortificação da carne antes que o equilíbrio é restaurado” (p. 21).
33. D. E. H. Whiteley, The Theology of St. Paul (Grand Rapids, 1964), p. 39.
34. Charles Davis, “The Resurrection of the Body,” Theology Digest (1960), p. 100.
35. George Eldon Ladd, A Theology of the New Testament (Grand Rapids, 1974), p. 472.
36. Oscar Cullmann (nota 15), pp. 25-26.
37. Para uma iluminadora discussão sobre o entendimento do dualismo de Paulo, ver Ronald L. Hall, “Dualism and Christianity. A Reconsideration”, Center Journal (outubro de 1982), pp. 43-55.
38. H. Wheeler Robinson (nota 8), p. 117.
39. D. R. G. Owen, Body and Soul (Filadélfia, 1956), p. 171.
40. Ronald Hall (nota 37), p. 50.
41. D. R. G. Owen (nota 39), p. 174.
42. Ibid., pp. 174-175.
43. Rudolf Bultmann, Theology of the New Testament (Nova York, 1951), p. 194.
44. Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo, 1960), Vol. 3, parte 2, p. 436.
45. Para uma pesquisa abrangente de líderes eclesiásticos e eruditos que ao longo da história cristã têm mantido a visão holística da natureza humana e assim a imortalidade condicional, ver os monumentais dois volumes de LeRoy Edwin Froom, The Conditionalist Faith of Our Fathers: The Conflict of the Ages Over the Nature and Destiny of Man (Washington, D. C., 1965).
46. William Temple, Christian Faith and Life (Londres, 1954), p. 81.
47. William Temple, Man, Nature and God (Londres, 1953), p. 472.
48. Oscar Cullmann (nota 36), p. 28.
49. Ibid., p. 47.
50. Ibid.
51. Martin J. Heinecken, Basic Christian Teachings (Filadélfia,1949), pp. 37, 133.
52. Basil F. C. Atkinson, The Pocket Commentary of the Bible (Londres, 1954), Part 1, p. 32.
53.  Claude Tremontant, St. Paul and the Mystery of Christ (Nova York, 1957), pp. 132-133. Os itálicos foram adicionados. Numa linha de pensamento semelhante, Y. B. Tremel, erudito dominicano francês, faz uma notável admissão: “O Novo Testamento obviamente não concebe a vida humana após a morte filosoficamente ou em termos da imortalidade natural da alma. Os autores sagrados não pensam na vida por vir como o termo de um processo natural. Pelo contrário, para eles é sempre o resultado de salvação e redenção; depende da vontade de Deus e da vitória em Cristo” (“Man Between Death and Resurrection,” Theology Digest [outono de 1957], p. 151).
54. Dom Wulstan Mork, The Biblical Meaning of Man (Milwaukee, WI, 1967), p. x.
55. Ibid., p. 49.
56. Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man (Nova York, 1964), p. 295. Itálicos adicionados.
57. T. A. Kantonen, The Christian Hope (Filadélfia, 1954), P. 28.
58. Derwyn R. G. Owen, Body and Soul: A Study of the Christian View of Man (Filadélfia, 1956), p. 27.
59. Ibid., p. 29.
60. Ibid., p. 98.
61. Emil Brunner, Eternal Hope (Filadélfia, 1954), p. 106. Itálicos adicionados.
62. Ibid., p. 101.
63. Ibid.
64. Stephen H. Travis, I Believe in the Second Coming of Jesus (Grand Rapids, 1982), p. 198.
65. Ibid., p. 163.
66. Bruce R. Reichenbach, Is Man the Phoenix? A Study of immortality (Grand Rapids, 1978), p. 54.
67. Donald G. Bloesch, Essentials of Evangelical Theology (São Francisco, 1979), Vol. 2, p. 188.
68. Anthony Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids, 1979), p. 90.
69. F. F. Bruce, “Paul on Immortality,” Scottish Journal of Theology 24, 4 (novembro de 1971), p. 469.
70. Murray Harris, “Resurrection and Immortality: Eight Theses,” Themelios 1, no. 2 (primavera de 1976), p. 53.
71. Ibid.
72. Ralph Walter Doermann, “Sheol in the Old Testament,” (Dissertação doutoral, Duke University, 1961), p. 205.
73.    H. Dooyeweerd, “Kuypers Wetenschapsleer,” Philosophia Reformata, IV, pp. 199-201, como citado por G. C. Berkouwer, Man: The Image of God (Grand Rapids, 1972), pp. 255-256.
 74. Anthony A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids, 1979), p. 91.


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